14: a filha pródiga.

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A lucidez era sua maior inimiga. A sobriedade a mantinha presa ao tempo, constante e dolorosamente solitário, e ela perseguia acordada a vastidão do vazio pacífico e reconfortante dos sedativos; a inconsciência causada pela droga tornou-se um anestésico para a dor emocional que era acordar e perceber, todas as vezes, que estava viva. Sua realidade mostrou-se cruelmente paciente: aguardava-a em seu sonho, e então, quando emergia do seu vazio, tudo retornava. As dores, as verdades, a vida como era e como nunca voltaria a ser.

A rotatividade de visitantes nas poltronas desconfortáveis ao lado da sua cama a indicavam que o tempo, invariavelmente, estava passando. Dias, horas ou semanas. O tempo passava de forma disforme, distorcido em si mesmo; a ideia de tempo, para ela, finalmente se tornou apenas o que era: uma ideia. Seus acompanhantes mantinham conversas — ou, pelos menos, tentavam — quando acordava e permanecia consciente, mas que para ela não tinham o maior sentido em sua mente deformada pela tristeza e nocauteada pelos analgésicos; quando o primeiro suspiro de desconforto saia de seus lábios, a enfermeira vinha para lhe dar o que ela mais desejava: a inconsciência.

Despertou outra vez. O som do mundo se infiltrou através do véu escuro do seu vazio e ela sentiu o ar gélido do quarto serpenteando o mormaço cálido de seus sonhos. Demora-se a abrir os olhos, na vã tentativa de permanecer longe de todo o caos, mas a vida era contínua e implacável, e ela precisava enfrentá-la. Pelo tempo que fosse possível.

— Por favor, Sabine. Eu só quero vê-la. Que mal há nisso? — A voz exaltada, vinda de um sonho memorável, mas real o bastante para ser um eco do seu presente a fez reagir, alerta, ao mundo. A luz ofuscante do quarto desfoca sua visão, e ela se contorce, inquieta, na tentativa de extrair de onde vinha o som. De onde vinha o tom familiar que a fez retesar os músculos na cama. — Ela nem mesmo está acordada. Por favor.

— É muito gentil da sua parte ter vindo de tão longe para vê-la, querida. Mas eu não acho que isso vá fazer bem a nenhuma de vocês. Reviver o passado desse jeito, Chloé, pode pio-

— Mae, deixe ela entrar! — Marinette gritou, exaltada, ao ouvir a quem pertencia a voz vinda de um tempo remoto, evocada pela memória; e a memória era tudo o que ela tinha. Sua boca, seca e amarga, doeu ao pronunciar as palavras com tanto ímpeto, e antes mesmo que pudesse se lamentar pela falta de cuidado, ela estava empurrando a cintura contra o colchão, levando-se de maneira urgente. — Mãe, deixe ela entrar! — grita outra vez, para ser clara quanto ao seu pedido.

Marinettte sente o peito arder de ansiedade; a emoção toma conta de si de maneira que a deixa cega, transtornada após tanto tempo sentindo-se enclausurada, presa ao seu vazio, convergindo com o tudo e o nada. Sente-se enjoada, um pavor familiar se instalava nela; recorda-se da necessidade latente de companhia que a fez agarrar-se a Chat, da felicidade indescritível de vê-lo outra vez, do ódio pelo abandono e o medo de que o monstro que tanto perseguia Adrien — ela mesma — ainda estivesse manchando o verde de seus olhos com aquele mesmo tom acusatório: o que foi que você fez? O masoquismo enraizado na matriz de suas interações com o passado se manifesta no medo que sente que precisa sentir. A porta se abre com timidez, e ela ouve passos vacilantes e um rosto cansado na soleira, pedindo permissão. Marinette não a reconhece. Demora-se nos cabelos loiros, imutáveis, brilhantes como um dia de verão, e nos olhos azuis; não há nada nela que seja meramente parecido com aquilo que imaginou. O nojo, o ódio, a tristeza que os devorava de dentro para fora. Havia apenas um calor indulgente, e quando a loira sorriu, de pé, apoiada na porta, como se ela fosse um presente debaixo da árvore na manhã de Natal, Marinette sentiu uma felicidade morna em seu peito.

Chloé deixa a porta entreaberta e caminha devagar, como se não confiasse no que visse; em algum momento, ela estendeu uma das mãos graciosas e coberta de anéis dourados, trêmula, pensando que, se a tocasse, poderia acordar do pesadelo que foram os últimos anos em exílio. Longe de casa, longe dela. Longe da segunda vida que trouxe sentido para sua existência. A loira toca em sua mão gelada antes mesmo de dizer alguma coisa, e Marinette permite, como vem permitindo que a toquem — por culpa, por não se incomodar, por saber como a dor se manifestava de forma tão cruel que o toque era a única forma de aliviar o que sentiam —, e sorri quando sente adoração na forma como os dedos de Chloé encontram os seus e soa como se estivesse maravilhada.

Cicatrizes de batalhaOnde histórias criam vida. Descubra agora