O som das duras rodas de seu Strada na terra alaranjada era a única coisa que ouvia. Andado com uma convidada silenciosa por quase cinquenta quilômetros, com um destino inusitado, e talvez devastado, Edmilson se entediava nas longas estradas.
De tempos em tempos, o rádio era ligado, mas dele apenas estática saía. Quanta decepção.
O sol quente refletido do capô era o bronze que tentava remediar sua vontade de ir na praia. Com sua quarta lata de enérgico na mão, a menina Karlene tentava se manter de olhos abertos, acreditando cada vez mais que nunca chegariam a lugar nenhum.
A grama seca se repetia e repetia e repetia, acompanhada dela, as vezes, uma pedra ou arbusto. O vasto pasto amarelo era infinito, se ia, e não se chegava.As ondas na visão causadas pelo calor atrapalhavam cada vez mais o motorista, que mentia para si mesmo toda vez que aparecia uma placa. 'Estamos chegando'
Mas como dizem, repetindo uma mentira várias vezes acaba a tornando verdade. O momento foi bem simples. A aparição de uma pequena casa a distância.A cidadezinha de Santo Aré era como um oásis no meio de pastos e pastos vazios. Uma duzia, ou menos, de casinhas humildes compunham sua paisagem, acompanhadas de uma igreja, um bar, e um cemitério. Coerente ao comum.
Era um lugar estranho. Uma cidade do sem, sem ensino médio, sem hospital, sem riquezas e quase sem pessoas.O Strada de rico chamava atenção nas ruas de terra, os carros não eram uma espécie bem vinda.
As rodas giravam devagar pelas ruas até o avistar. O casarão de dois andares, não contando com um sótão, se estendia alto pelo céu não populado de Santo Aré.
Sua arquitetura, com madeira artesanal e telhas importadas de outro estado, era uma anomalia. Ela era gigante.
Parando devagar o carro, os dois se preparavam pra entrar na casa, colocando as latas em uma sacola de plástico.As malas pesadas passavam pelo chão de pedra do primeiro andar. Com passos rápidos, Karlene ia para o quarto com o desespero de sua bexiga cheia.
O quarto em questão era do irmão de Edmilson, que havia ido embora e prometido nunca mais voltar. Por conta disso o quarto permanecia igual a 8 anos.
As pequenas fotos de família eram superadas por finas hastes de madeira atrás dos porta-retratos e seu antigo guarda-roupa eram cobertos por um manto branco do tempo. Mas não importava mais, Karlene jogou sem cerimônia sua mala em cima da cama, mudando os lençóis que por anos estiveram arrumados e estáticos.Tirou os sapatos e se jogou na outra metade da cama. Levantando a cabeça pesada conseguia ver Edmilson pelas bordas da pequena janela.
Encostado no portão de madeira, ele conversava com um homem conhecido. Seu Zé, um homem baixo e com falta de cabelo que foi denominado pelos vizinhos o faz tudo da cidade, não que havia muito a fazer.- Eae como tá lá na cidade?
- Bem...a capital é animada.
- É muito barulhenta pra um velho como eu. - Disse com uma risada cansada. - E seu irmão, como ele está?
Edmilson sentiu sua mandíbula em tensão, sua boca rapidamente se tornava áspera e amarga.
Era difícil falar sobre seu irmão. Um homem da estrada, da cidade, das plantas confinadas no fundo dos mais escuros apartamentos.
- Ele tá lá pra São Paulo ainda. - O vazio de seu quarto era explicado curtamente com aquela frase.- Ele podia voltar uma hora né...pra ver minha menina. - Os lábios de seu Zé foram conscientemente interrompidos por um peso em seus olhos. - De qualquer jeito, o Juninho tá com saudades...passa lá no curral depois do almoço. - José disse se afastando da casa, ascendendo um pequeno cigarro. - Até.
- Até. - O som insuportável do portão sem um olho foi ouvido ao Edmilson fecha-lo. Andou para o quintal de sua frágil mansão esperando encontrar algo algo para se distrair, mas em vez disso se deparou com as quebradas estacas de seu muro.
Bufou consideravelmente ao ver que logo em seu primeiro dia teria que trabalhar, mas outro pensamento também rondava sua mente. "Aquelas estacas estavam inteiras antes, não estavam?"Mas sua preocupação não teve uma vida longa, logo ouviu o som do portão novamente.
Dessa vez a visitante era dona Marta, trazendo consigo uma panela cheia de canjicão.
Quem a atendeu foi Karlene, que já desmaiava de fome após ter comidos todos os petiscos de casa. Doce Marta por estar no lugar certo e na hora certa. O fogão de pedra foi rapidamente aceso pela fome, os pratos foram com classe colocados na tábua da mesa. A toalha de mesa florida e velha não se destacava dos pratos da que possuíam a mesma estampa nos lados.
Sentado so lado de Karlene, trêmula mão de Edmilson tentava segurar sua colher de prata. As memórias do passado infantil, entretanto, o impediam. Afinal, ele estava na casa dela, comendo a comida que a amiga dela havia feito, como ele poderia não retornar a isso agora?O canjicão não ajudava, seu cheiro quase azedo fazia seu estômago embrulhar de ansiedade. E como todo cavalo, com peso o suficiente, sua espinha quebrou.
- Edmilson... EDMILSON! - o rosto confuso de Karlene dizia tudo que se precisava saber, deixada a só com dois pratos de canjicão. - A comida vai esfriar...As pegadas pontudas da bota de Edmilson traçavam um claro caminho de um homem sem rumo. A terra amarelo manga era remexida de novo e de novo enquanto ele tentava se achar.
A covardia e a tristeza agarradas nas paredes como mofo impedia-o de entrar na casa. Mas sua covardia o impedia de entrar em qualquer outro lugar.Pra ocupar sua cabeça, olhou as horas. 12:35, 'Isso já contaria como depois da almoço?'
Decidiu então ir para o curral, seu maior ponto era cavalos não falavam. Não que pessoas falariam algo pra ele também.
O som quente refletia nas feias telhas do telhado do curral. Sua cerca era de tábuas velhas que possuía mas pontas do que vidro.Entrou com passos leves e envergonhados, passou pelo portão de madeira.
- Juninho? - O Juninho que conhecia na verdade era Jonas Raimundo neves, mas dele só sobraram memórias da infância e esperança de um futuro precocemente interrompido.
Ouviu um barulho repentino aos fundos do curral.
- Um cavalo?! - A aparição óbvia do animal fez com que todas as informações guardadas viessem de novo a Edmilson.
Seu presente de graduação foi nomeado em honra
ao seu amigo. Se lembrou do desconforto de seu pai quando a ideia foi primeiramente dita, foi um momento estranho.Moveu seus dedos calmamente mais perto do animal, que permanecia estático. Sua pelagem era bem cuidada, um madeira claro brilhava reluzente.
- Então você veio! - O tom animado de seu Zé minimamente assustou Edmilson, o fazendo dar um pequeno pulo. Entrando sem cerimônia pelo portão entreaberto.
- Vim.. - Disse desconfortavelmente Edmilson.
- Sabe...esses animais são muito mais do que parecem, é uma pena que fora daqui são só usados para ir de um lado pro outro. - Disse chegando mais perto, tirando seu chapéu e o pendurando em uma das pontas da cerca - Por isso temos cuidar muito bem deles.
- O senhor faz isso bem, Juninho está muito bonito.
- Mas esse não é Juninho, ele é o cavalo de seu irmão. - A vergonhas de Edmilson era perceptível. - O Juninho está no outro...- disse caminhando pelo chão de terra, até que...- Juninho! - O grito de seu Zé fez com que Edmilson corresse pelas paredes de madeira.
O lugar onde deveria ter o cavalo era ocupado pelo vazio. As tábuas intocadas confundiam a cabeça dos dois homens.
- Como um bixo daquele tamanho some assim. - O tom de seu Zé era surpreendente calmo.Olhando mas de perto, realmente não havia nenhum sinal de detrimento no lugar, apenas alguns danos que naturalmente viriam da presença de um animal.
Edmilson precisava admitir que a segurança do local era praticamente nula, uma pessoa poderia facilmente entrar e sair do curral, mas um cavalo...?A questão permanecia fervente em sua cabeça, mas teve que voltar para sua casa sem nenhuma chance de resposta. Andou até a casa e foi recebido sem cerimônia por Karlene, que o esperava sentada e entediada esperando alguma coisa a tirar daquele estado.
- Essa cidade contínua igual a oito anos atrás...feia e chata. - Mesmo estando há tanto tempo longe, a moça não sentia nada de saudade do lugar. - Eu fiz um bolo, ele é de fubá, se você quiser.- Tá...eu vou pegar.
Sentado com a cara fechada usando um pequeno garfo de prata, Edmilson tentava comer o pedaço de bolo que se desfazia a cada minuto.
A sala de jantar em que se encontrava era rodeada por grandes janelas, a quais foram colocadas após uma reforma que seu pai havia feito. Geralmente elas apenas mostravam os quilômetros de terra laranja.Mas enquanto descansava sua vista em uma das aberturas de vidro, percebeu detalhes que não deveriam estar lá.
Detalhes de uma pessoa. Fios de cabelo finos, escuros e cacheados. Que rapidamente fugiram de seu campo de visão.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Aré
Mystery / ThrillerConto de mistério no interior de Mato Grosso do Sul. Onde a pequena cidade de Santo Aré, se revela abaixo de seu mato não capinado.