Frio

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O papel estava amassado e amarelado, Edmilson pensava ter caído do bolso de seu pai quando ele subiu. Abrindo mais um pouco tinha uma escrita difícil de entender, mas a assinatura embaixo era clara. 
 - Gustavo? - Edmilson sussurrou para si mesmo, trazendo o papel um pouco mais para luz, conseguiu discernir uma mensagem, mesmo com a letra feia.

"Eu ainda estou com seu filho, 50 mil na porteira, até..." 

A data estava borrada, já que o papel parecia ter sido escrito a lápis, o grafite já desbotava, mas se seu pai havia vindo ontem, só poderia ser um dia. Amanhã.
Mesmo sendo uma data com tanta proximidade, ele não conseguia encontrar em si nenhum sentimento de preocupação. No pouco tempo que tinha visto Gustavo, ele era muito fraco para ganhar qualquer luta, muito menos uma contra seu irmão. 

No momento em que subia as escadas no silêncio com o papel no bolso, subiu sobre ele uma possibilidade: 'e se ele tiver uma arma?'. Mas não poderia qualquer faca ou facão, teria que ser uma pistola. Talvez dessa vez ele realmente tivesse que ir resgatar seu irmão. Os cantos de seus labos levantaram levemente na penumbra, e finalmente foi ao seu quarto.

O dia em Santo Aré levanta cedo, cerca de cinco e pouco da manhã. Era inverno, e portanto o sol, que em qualquer outro momento já estaria escaldante, estava alguns minutos atrasados para mostrar sua face. Mas a essa hora só estariam mesmo acordados homens trabalhadores, como Seu Zé. 

Seu Zé não era um dos que nasceram naquele lugar, entretanto, podia ainda se considerar tão areno como o resto, talvez ainda mais. Mesmo com seus tantos anos, seus cabelos brancos não o impediam de trabalhar cedo todos os dias para melhorar a cidade.
No fundo, ele sabia que era inútil, mas não conseguia evitar. Afinal, seu labor era sempre recompensado com um aumento quase insignificante da animação na fala do senhor Jorge, mas ele sempre percebia, e demonstrava sua gratidão, é claro.

As vindas do senhor Jorge eram poucas e ao longo dos anos os intervalos entre elas ficaram cada vez maiores e a antecipação de seu Zé também foi diminuindo. Mas é claro, nunca iria contra ao senhor Jorge, afinal sem ele seu Zé não teria lugar onde cair morto, ou pelo menos não conseguia imaginar um motivo antes da noite anterior.

Sua raiva tomou sua racionalidade e o fez confrontar Jorge, nem questionou a veracidade das palavras de sua filha, foi direto para a rua descalçada que lhe serviria de campo de batalha.

Todavia, seu último sentimento foi na verdade arrependimento. Quando  colocou sua mão entre seus cabelos brancos embaixo de seu chapéu e sentiu o frio do líquido avermelhado, não se viu com medo da morte. Agora, quando caiu sob os joelhos e viu sua filha o encarando por trás de Jorge, descalça, de pijama e com seus cabelos longos alvoroçados, viu de novo a pequena menina que o esperava todo dia no portão na sua volta ao trabalho.

Todavia agora sua face se contorcia entre soluços e gritos. Antes de sua visão apagar, entretanto, viu aos cantos um rosto familiar.

- Juninho...?- Não conseguiu se aproximar do seu filho perdido, mas se lhe servia de consolo, sentiu por último em sua vida o calor de um abraço com sua filha. 

- Coitado...- Seu Jorge engoliu seco, com a arma quente ainda em suas mãos.

Dorotéia não levantou seus olhos, de onde caiam águas salgadas, para olhar para Jorge. Manteve seus joelhos ralados na terra avermelhada. Seus ombros tensos e sua boca entreaberta, apertou suas unhas em sua mão, parando apenas quando deixou de ouvir os paços dos sapatos caros do assassino atrás de si.
Ouviu ele abrindo o portão daquele casarão. E quando ele não podia ser mais visto, se levantou e virou para a casa que estava á suas costas, e olhou, olhou bem, deixou suas pupilas traçarem por cada fresta entre as madeiras.

Juninho, do outro lado da rua, ficou esperando Dorotéia dizer algo, esperando ela falar palavras de tristeza ou de motivação, mas ela permaneceu calada. Os únicos sons que a o vento carregou dos dois eram das pás pesadas sendo carregadas, raspando o chão, e gemidos de cansaço enquanto tentavam cavar pelo menos a dois metros do chão.
Ao fim o túmulo estava feio, a única coisa que indicava que havia alguém ali era a terra solta. Dorotéia pegou quatro pedras e empilhou onde em uma situação melhor seria a lápide. Todavia, parou, pensou, e depois de um tempo olhando para as pedras, decidiu pegar uma, que parecia áspera em comparação as outras, e a tirou do monte.

Agora tinha um a menos em Aré. Ainda bem.

Em outro canto da cidade, em meio a alguns pés de café mortos, Edmilson e Karlene discutiam as próximas fases do seu plano de sair daquela cidade.
- Edmilson, você não é burro, é claro que aquele papel é falso!

- Eu imagino...o Gustavo não deve nem saber ler.- ele olhou para seus pés, dessa vez, diferente de muitas outras,  havia se vestido apropriadamente, com botas antigas que imaginava ser do seu pai, e que agora descascavam nas solas. - Mas por que ele viria a um lugar...tão morto?

- Resolver negócios inacabados ué, ou sei lá, relembrar a vida rural. - A última parte foi dita em um tom sarcástico, com Karlene se ajeitando no buraco desconfortável que tinha feito na terra avermelhada. - Olha, não podemos ficar nesse mato para sempre. - Desviou o olhar para o céus, vendo que não havia uma nuvem sequer, bufou em desapontamento.

- Então vamos confrontá-lo. 

-Oi? Você está louco?

- Eu só não aguento mais! Temos que terminar logo com isso. Vamos, você e eu? - Se levantou, batendo a areia de suas calças.

- Eu não sei...tudo bem, você acha que convence ele?

- Vamos ver ué, não tem como saber...




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⏰ Última atualização: Jul 31 ⏰

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