capitulo25

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CAPÍTULO 25
No qual ficamos sabendo o que aconteceu apenas dez minutos antes.
Tinha se passado uma hora? Com certeza, uma hora.
Lucy respirou fundo e tentou se acalmar. Por que ninguém pensara em colocar um relógio
no banheiro? Não deviam ter imaginado que alguém, um dia, poderia ficar preso à privada e
querer saber a hora?
Era só uma questão de tempo.
Lucy tamborilava os dedos da mão direita no chão. Rápido, rápido, do indicador ao dedo
mindinho, do indicador ao dedo mindinho. Sua mão esquerda estava amarrada de modo que as
pontas dos dedos ficavam para cima, então ela os dobrava, depois esticava, dobrava e esticava...
– Aaaaahhhhh! – gemeu, frustrada.
Gemeu? Grunhiu. Gegrunhiu. Isso devia ser uma palavra.
Sim, já fazia uma hora. Com certeza.
E então...
Passos.
Lucy ficou atenta, olhando para a porta. Estava furiosa. E esperançosa. E apavorada. E
nervosa. E...
Meu Deus, ela não devia ter de sentir todas essas emoções ao mesmo tempo. Uma de cada
vez era o máximo com que conseguia lidar. Talvez duas.
A maçaneta girou e a porta foi aberta com força, então...
Aberta com força? Lucy teve um segundo para perceber que havia algo errado. Gregory não
teria empurrado a porta com força. Ele teria...
– Tio Robert?
– Você – disse ele, a voz baixa e furiosa.
– Eu...
– Sua vadia – sibilou o homem.
Lucy se encolheu. Sabia que ele não tinha nenhuma grande afeição por ela, mas ainda assim
doía.
– O senhor não entende – disse ela, porque não fazia ideia do que falar, e se recusava... se
recusava a mentir que sentia muito.
Estava decidida a dar um basta nas desculpas, de uma vez por todas.
– Ah, é mesmo? – esbravejou ele, agachando-se perto dela. – O que exatamente eu não
entendo? A parte em que você fugiu do casamento?
– Eu não fugi – rebateu ela. – Eu fui sequestrada! Ou o senhor não notou que estou
amarrada à privada?
Os olhos dele se estreitaram de forma ameaçadora e Lucy começou a ficar assustada.
Ela se encolheu, a respiração curta e rápida. Fazia muito tempo que se sentia intimidada
pelo tio – a frieza de seu temperamento, o olhar fixo e indiferente de desdém –, mas nunca ficara
assustada daquele jeito.– Onde ele está? – perguntou ele.
Lucy não se fez de desentendida.
– Eu não sei.
– Diga-me!
– Eu não sei! – exclamou ela. – O senhor acha que ele teria me amarrado se confiasse em
mim?
Seu tio ficou de pé e praguejou.
– Não faz sentido.
– O que não faz sentido? – perguntou Lucy, cautelosamente.
Ela não sabia direito o que estava acontecendo, e nem de quem seria esposa no final daquele
dia, mas tinha certeza de que devia ganhar tempo.
E não revelar nada.
– Isso! Você! – disparou o homem. – Por que ele iria raptá-la e deixá-la aqui, na Casa
Fennsworth?
– Bem, acho que ele não conseguiria sair daqui comigo sem que alguém visse – disse Lucy
lentamente.
– Ele não poderia ter entrado na festa sem que alguém visse também.
– Não sei o que o senhor quer dizer.
– Como ele a pegou sem o seu consentimento? – perguntou o tio, abaixando-se e
aproximando o rosto do dela.
Lucy soltou o ar, bufando. A verdade era fácil. E inócua.
– Fui para o meu quarto me deitar – explicou. – E ele estava lá me esperando.
– Ele sabia qual era o seu quarto?
Ela engoliu em seco.
– Pelo jeito, sabia.
Seu tio a encarou por um instante desconfortavelmente longo.
– As pessoas já começaram a notar a sua ausência – murmurou.
Lucy não disse nada.
– Mas não se pode evitar.
Ela piscou. Do que ele estava falando?
Ele balançou a cabeça.
– É a única maneira.
– Perdão...?
E então Lucy percebeu. Ele não estava falando com ela. Estava falando consigo mesmo.
– Tio Robert? – sussurrou.
Mas ele já estava cortando os cachecóis que a prendiam.
Cortando? Cortando? Por que ele tinha uma faca?
– Vamos – grunhiu o homem.
– Voltar para a festa?
Ele abriu um sorriso sombrio.
– Você bem que gostaria, não é?
O pânico começou a se instalar no peito dela.
– Aonde pretende me levar?
Ele puxou Lucy para colocá-la de pé e passou um dos braços com força em volta dela.
– Para o seu marido.
Ela conseguiu torcer o corpo apenas o suficiente para encará-lo.– Meu mar... Lorde Haselby?
– Você tem outro marido?
– Mas ele não está na festa?
– Pare de fazer tantas perguntas.
Ela olhava freneticamente de um lado para outro.
– Mas aonde o senhor está me levando?
– Você não vai estragar isso – sibilou ele. – Está entendendo?
– Não – respondeu ela, suplicante.
Porque não entendia. Já não estava entendendo mais nada.
Ele a puxou com força contra si.
– Quero que você me ouça, porque só vou dizer isto uma vez.
Lucy assentiu. Não estava de frente para o tio, mas sabia que ele podia sentir a cabeça dela
se mexendo contra seu peito.
– Este casamento vai ser consumado – afirmou ele, a voz baixa e mortal. – E eu vou
garantir, pessoalmente, que isto aconteça esta noite.
– O quê?
– Não discuta comigo.
– Mas...
Ela fazia força com os pés no chão enquanto ele a arrastava até a porta.
– Pelo amor de Deus, não lute comigo – murmurou ele. – Não é nada que você já não
tivesse de fazer de qualquer maneira. A única diferença é que vai ter uma plateia.
– Uma plateia?
– É indelicado, mas terei a minha prova.
Ela então começou a se debater como louca, e conseguiu soltar um braço por tempo
suficiente para balançá-lo descontroladamente pelo ar. O tio logo a conteve, mas a mudança
momentânea de posição permitiu que Lucy chutasse com força a canela dele.
– Maldição – resmungou o homem, puxando-a para perto. – Pare com isso!
Ela chutou de novo, virando um penico vazio.
– Pare! – Ele pressionou suas costelas com um objeto indefinido. – Agora!
Lucy parou na mesma hora.
– Isso é uma faca? – sussurrou.
– Lembre-se disso – respondeu ele, as palavras quentes contra o ouvido dela. – Não posso
matá-la, mas posso lhe causar muita dor.
Ela engoliu um soluço.
– Eu sou sua sobrinha.
– Não me importo.
Lucy engoliu em seco e perguntou bem baixo:
– E algum dia já se importou?
Ele a empurrou em direção à porta.
– Se eu já me importei?
Ela assentiu.
Por um instante, ele ficou em silêncio, e Lucy não soube como interpretar isso. Não
conseguia ver o rosto do tio e não sentiu nenhuma mudança em sua postura. Não podia fazer
nada além de olhar para a porta e para a mão dele, que se estendia até a maçaneta.
Então ele disse:
– Não.E ela teve sua resposta.
– Você era uma obrigação – acrescentou o homem. – Um dever que cumpri, e do qual estou
feliz em me livrar. Agora venha comigo, e não diga uma palavra.
Lucy assentiu. A faca dele pressionava suas costelas cada vez mais forte, a lâmina roçando
o tecido duro de seu corpete.
Ele a levou pelo corredor e desceu as escadas. Gregory estava ali, Lucy dizia a si mesma.
Estava ali e iria encontrá-la. A Casa Fennsworth era grande, mas não havia tantos lugares assim
em que seu tio poderia escondê-la.
E havia centenas de convidados no térreo.
Além disso, lorde Haselby com certeza não iria concordar com aquele plano.
Havia pelo menos uma dezena de razões para seu tio não conseguir o que queria. Talvez até
mais. E ela só precisava de uma para frustrar seu plano.
Mas esse pensamento não foi muito reconfortante quando ele parou e colocou uma venda
nos olhos dela.
E menos ainda quando a jogou em um cômodo e a amarrou.
– Eu vou voltar – disparou ele, deixando-a sentada em um canto, com as mãos e os pés
atados.
Lucy ouviu os passos dele pela sala e sentiu escapar dos próprios lábios uma pergunta, a
única que importava: – Por quê?
Ele parou de andar.
– Por que, tio Robert?
Não era possível que ele estivesse fazendo aquilo apenas pela honra da família. Ela já não
tinha provado que não a colocaria em risco? Ele já não devia confiar nela àquela altura?
– Por quê? – perguntou Lucy de novo, rezando para que ele tivesse uma consciência.
Tinha certeza de que o tio não poderia ter cuidado dela e de Richard por tantos anos sem
algum senso de certo e errado.
– Você sabe por quê – respondeu ele, mas ela sabia que estava mentindo, porque tinha
demorado demais a responder.
– Vá, então – disse ela, amargamente.
Não havia razão para atrasá-lo. Seria muito melhor que Gregory a encontrasse sozinha.
Mas ele não se mexeu. E, mesmo com os olhos vendados, ela podia sentir sua desconfiança.
– O que está esperando? – gritou Lucy, então.
– Eu não tenho certeza – respondeu ele, devagar.
Em seguida, Lucy ouviu os passos do tio se aproximarem dela.
Lentamente.
Lentamente...
E então...
– Cadê ela? – perguntou Hermione, aflita.
Gregory entrou no pequeno cômodo, observando tudo atentamente – os cachecóis cortados,
o penico virado.– Alguém a levou – disse ele, sério.
– O tio dela?
– Ou Davenport. Eles são os únicos com alguma razão para... – Ele balançou a cabeça. –
Não, eles não podem lhe fazer mal. Precisam que o casamento seja legal e irrevogável. E
duradouro. Davenport quer que Lucy lhe dê um herdeiro.
Hermione assentiu.
Gregory virou para ela.
– Você conhece a casa. Onde ela poderia estar?
Hermione balançava a cabeça.
– Não sei. Não sei. Se tiver sido o tio dela...
– Suponha que tenha sido – falou Gregory.
Ele não acreditava que Davenport fosse ágil o bastante para raptar Lucy, e, além disso, se o
que Haselby dissera sobre o pai era verdade, então Robert Abernathy era o homem cheio de
segredos.
Era ele a pessoa com algo a perder.
– O escritório – sussurrou Hermione. – Ele está sempre no escritório.
– Onde fica?
– No térreo. Voltado para os fundos.
– Ele não arriscaria – disse Gregory. – É perto demais do salão de baile.
– Então o quarto dele. Se ele quiser evitar os cômodos abertos a todos, então é para lá que a
levaria. Ou para o quarto dela.
Gregory pegou o braço de Hermione e saiu à frente dela. Desceram um lance de escada,
fazendo uma pausa antes de abrir a porta que levava da escada de serviço para o patamar do
segundo andar.
– Mostre-me a porta dele e então vá.
– Eu não...
– Encontre o seu marido – ordenou ele. – Traga-o de volta.
Hermione parecia indecisa, mas enfim assentiu e obedeceu.
– Vá – disse ele, quando já sabia para onde ir. – Rápido.
Ela desceu a escada enquanto Gregory caminhava furtivamente pelo corredor. Chegou à
porta que Hermione tinha indicado e encostou a orelha a ela, com cuidado.
– O que está esperando?
Era Lucy. A voz estava abafada pela pesada porta de madeira, mas era ela.
– Eu não tenho certeza – disse uma voz masculina, que Gregory não conseguiu identificar.
Ele só tinha falado algumas vezes com lorde Davenport e nenhuma com o tio dela. Não
fazia ideia de quem a estava mantendo refém.
Gregory prendeu a respiração e, lentamente, girou a maçaneta com a mão esquerda.
Com a mão direita, puxou a arma.
Que Deus os ajudasse, se tivesse de usá-la.
Conseguiu abrir a porta um pouco – apenas o suficiente para espiar sem ser notado.
Seu coração parou.
Lucy estava amarrada e vendada, encolhida no canto do outro lado do cômodo. Seu tio
encontrava-se de pé na frente dela, uma arma apontada para sua testa.
– O que você está tramando? – perguntou-lhe o tio, a voz fria e suave.
Lucy não disse nada, mas seu queixo tremia, como se ela estivesse se esforçando muito para
se manter firme.– Por que você quer que eu saia? – insistiu o tio.
– Eu não sei.
– Diga! – Ele se lançou para a frente e enfiou a arma entre as costelas dela. E então, como
Lucy não respondeu rápido o bastante, ele arrancou a venda de seus olhos e aproximou o rosto
do dela até restarem poucos centímetros de distância entre os dois. – Diga-me!
– Porque não posso suportar a espera – sussurrou ela, a voz trêmula. – Porque...
Gregory entrou silenciosamente no quarto e apontou a arma para as costas de Robert
Abernathy.
– Solte-a.
O tio de Lucy ficou paralisado.
Gregory posicionou o dedo em torno do gatilho.
– Solte Lucy e se afaste bem devagar.
– Acho melhor não – disse Abernathy, e virou apenas o suficiente para Gregory ver que sua
arma agora estava encostada na têmpora de Lucy.
De alguma forma, Gregory se manteve inabalável. Ele nunca saberia como, mas seu braço
estava firme. Sua mão não tremia.
– Largue a arma – ordenou o tio.
Gregory não se mexeu. Olhou para Lucy, depois de volta para o tio dela. Será que ele iria
machucá-la? Seria capaz disso? Gregory ainda não sabia exatamente por que Robert Abernathy
queria que Lucy se casasse com Haselby, mas estava claro que fazia questão absoluta disso.
O que significava que ele não poderia matá-la.
Gregory cerrou os dentes e apertou mais o dedo no gatilho.
– Solte Lucy – ordenou ele, a voz baixa, firme e forte.
– Largue a arma! – rugiu Abernathy, e um som horrível e sufocado escapou da boca de
Lucy quando ele prendeu um dos braços sob suas costelas.
Santo Deus, ele estava louco. Seus olhos corriam ensandecidos pela sala, e sua mão –
aquela com a arma – tremia.
Ele ia atirar nela. Gregory percebeu isso em um segundo nauseante. O que quer que
Abernathy tivesse feito, ele achava que não tinha mais nada a perder e não se importava com
quem levaria com ele.
Gregory começou a se ajoelhar, sem tirar os olhos do tio de Lucy.
– Não faça isso! – gritou Lucy. – Ele não vai me machucar. Não pode.
– Ah, eu posso sim – respondeu o tio dela, abrindo um sorriso.
O sangue de Gregory gelou. Ele ia tentar – Deus do céu, ele ia tentar de tudo para que os
dois saíssem dali vivos e ilesos –, mas se fosse preciso escolher, se apenas um deles pudesse sair
andando por aquela porta...
Seria Lucy.
Isso, percebeu ele, era amor. Era aquela sensação de que era o certo, sim. E era paixão
também, e saber que poderia acordar feliz ao lado dela pelo resto de sua vida.
Mas era mais do que tudo isso. Era esse sentimento, essa compreensão, essa certeza de que
ele daria sua vida por ela. Não havia dúvida. Nenhuma hesitação. Se ele largasse a arma, Robert
Abernathy com certeza atiraria nele.
Mas Lucy viveria.
Gregory agachou-se.
– Não a machuque – disse ele em voz baixa.
– Não solte a arma! – gritou Lucy. – Ele não vai...– Cale a boca! – bradou o tio, e pressionou ainda mais o cano de sua arma contra ela.
– Nem mais uma palavra, Lucy – alertou Gregory.
Ele ainda não sabia como diabo sairia daquela situação, mas tinha certeza de que a coisa
certa a fazer era manter Robert Abernathy o mais calmo e lúcido possível.
Os lábios de Lucy se abriram, mas então os olhos deles se encontraram... E ela fechou a
boca.
Ela confiava nele. Santo Deus, confiava nele para mantê-la segura – para manter os dois
seguros –, e ele se sentia um farsante, porque tudo o que estava fazendo era tentando ganhar
tempo até que alguém chegasse.
– Não vou machucar você, Abernathy – garantiu Gregory.
– Então solte a arma.
Gregory continuava com o braço estendido, a arma agora de lado para que pudesse pousá-la
no chão.
Mas ele não a soltou.
Sem tirar os olhos do rosto de Robert Abernathy, perguntou:
– Por que você precisa que ela se case com Haselby?
– Ela não lhe contou? – devolveu Abernathy, em tom de zombaria.
– Ela me contou o que você disse a ela.
O tio de Lucy começou a tremer.
– Conversei com lorde Fennsworth – falou Gregory calmamente. – Ele ficou um tanto
surpreso com a caracterização que você fez do pai dele.
O tio de Lucy não respondeu, mas Gregory viu seu pomo de Adão subindo e descendo
enquanto ele engolia em seco de maneira convulsiva.
– Na verdade – continuou Gregory –, Fennsworth estava bastante convencido de que você
se enganou.
Ele procurava manter a voz suave, tranquila. Sem deboche. Falava como se estivesse em um
jantar. Não pretendia provocar; só queria conversar.
– Richard não sabe de nada – retrucou o tio de Lucy.
– Falei com lorde Haselby também – prosseguiu Gregory. – Ele ficou tão surpreso quanto
Fennsworth. Não sabia que o pai vinha chantageando você.
O tio de Lucy olhou fixamente para ele.
– Ele está falando com o pai agora – acrescentou Gregory.
Ninguém falou. Ninguém se mexeu. Os músculos de Gregory ardiam. Ele estava agachado
havia vários minutos, equilibrando-se na parte da frente dos pés. Seu braço, ainda estendido,
ainda segurando a arma de lado, parecia estar em chamas.
Ele olhou para a arma. Olhou para Lucy. Ela balançava a cabeça bem devagar, com
movimentos discretos. Seus lábios não emitiam nenhum som, mas ele não teve nenhuma
dificuldade para identificar as palavras.
Vá. Por favor.
Surpreendentemente, Gregory sentiu que abria um sorriso. Então fez que não e sussurrou: –
Nunca.
– O que você disse? – perguntou Abernathy.
Gregory respondeu a única coisa que lhe veio à cabeça:
– Eu amo a sua sobrinha.
Abernathy olhou para Gregory como se ele tivesse enlouquecido.
– Eu não me importo.– Eu a amo o suficiente para guardar os seus segredos – acrescentou Gregory.
Robert Abernathy perdeu por completo a cor e ficou absolutamente imóvel.
– Foi você – disse Gregory, com a voz calma.
– Tio Robert? – falou Lucy.
– Cale a boca – disparou ele.
– O senhor mentiu para mim? – perguntou ela, e sua voz soou quase magoada. – Mentiu?
– Lucy, não – disparou Gregory.
Mas ela já estava balançando a cabeça.
– Não foi o meu pai, não é mesmo? Foi o senhor. Lorde Davenport estava chantageando o
senhor pelos seus próprios crimes.
O tio dela não disse nada, mas a verdade estava clara em seus olhos.
– Ah, tio Robert... – murmurou ela, com tristeza. – Como pôde?
– Eu não tinha nada – sibilou ele. – Nada. Só os restos que seu pai deixou.
Lucy ficou pálida.
– O senhor o matou?
– Não – disse Abernathy, simplesmente.
– Por favor – implorou ela, a voz fraca e aflita. – Não minta para mim. Não sobre isso.
O homem soltou um suspiro irritado e falou:
– Sei apenas o que as autoridades me informaram. Que ele foi encontrado perto de um lugar
de apostas, com um tiro no peito, e que tinham roubado todos os seus objetos de valor.
Lucy encarou-o por um instante e em seguida, com os olhos cheios de lágrimas, assentiu de
leve.
Gregory se levantou lentamente.
– Acabou, Abernathy – disse ele. – Haselby sabe, e Fennsworth também. Você não pode
forçar Lucy a fazer o que quer.
O homem agarrou-a com mais força.
– Posso usá-la para fugir.
– Pode, sim. Se soltá-la.
Abernathy riu. Era um som amargo, cáustico.
– Não temos nada a ganhar desmascarando você – disse Gregory, com cautela. – É melhor
deixarmos que vá embora discretamente do país.
– Nunca seria discreto – zombou o tio de Lucy. – Se ela não se casar com aquele
almofadinha esquisito, Davenport vai espalhar a notícia daqui até a Escócia. E a família será
arruinada.
– Não – retrucou Gregory, balançando a cabeça. – Não vai. Você nunca foi conde. Não era
o pai deles. Haverá um certo escândalo; isso não pode ser evitado. Mas o irmão de Lucy não
perderá o título, e tudo vai passar quando as pessoas começarem a lembrar que nunca gostaram
realmente de você.
Num piscar de olhos, o tio de Lucy moveu a arma para o pescoço dela.
– Cuidado com o que você diz – ameaçou.
Gregory ficou pálido e deu um passo atrás. E então os três ouviram o barulho alto de passos
vindo rapidamente pelo corredor.
– Abaixe a arma – disse Gregory. – Você só tem um segundo antes qu...
Várias pessoas surgiram na entrada do quarto. Richard, Haselby, Davenport, Hermione –
todos eles irromperam pelo cômodo, sem saber do confronto mortal que estava acontecendo.
O tio de Lucy saltou para trás, apontando a arma descontroladamente para todos eles.– Fiquem longe! – gritou. – Saiam! Todos vocês!
Seus olhos brilhavam como os de um animal acuado e seu braço balançava de um lado para
outro, sem deixar ninguém fora da mira.
Mas Richard deu um passo à frente.
– Seu desgraçado – sibilou. – Vejo você no...
Uma arma disparou.
Gregory assistiu, horrorizado, Lucy cair no chão. Um grito gutural rasgou sua garganta
enquanto via a própria arma levantada.
Ele tinha apontado. Atirado. E, pela primeira vez na vida, acertado o alvo.
Bem, quase.
O tio de Lucy não era um homem grande, mas, mesmo assim, quando caiu em cima dela, doeu.
Ela sentiu o ar deixar completamente os seus pulmões, enquanto arfava, sufocada, os olhos bem
fechados de dor.
– Lucy!
Era Gregory, tirando o tio de cima dela.
– Onde você foi atingida? – perguntou ele, e suas mãos estavam por toda parte,
movimentando-se freneticamente, enquanto procurava uma ferida.
– Eu não... – Ela fazia força para respirar. – Ele não... – Ela conseguiu olhar para o peito.
Estava coberto de sangue. – Ah, meu Deus.
– Não consigo encontrar – disse Gregory.
Pegou o queixo de Lucy e posicionou seu rosto de modo a olhar direto nos olhos dela.
E ela quase não o reconheceu.
Os olhos dele... aqueles belos olhos castanhos... era quase como se estivessem perdidos,
vazios. E isso parecia levar embora tudo o que fazia com que ele fosse... Gregory.
– Lucy – disse ele, a voz rouca de emoção. – Por favor, fale comigo.
– Eu não estou ferida – conseguiu dizer ela, finalmente.
As mãos dele ficaram paralisadas.
– O sangue...
– Não é meu.
Ela o encarou e levou a mão ao seu rosto. Ele tremia. Ah, Santo Deus, ele tremia. Ela nunca
o tinha visto assim, nunca tinha imaginado que ele pudesse chegar àquele ponto.
O olhar dele... Ela percebia agora. Era de pavor.
– Não estou ferida – sussurrou ela. – Por favor... não... está tudo bem, querido.
Ela nem sabia o que estava dizendo; só queria confortá-lo.
Gregory respirava com dificuldade e, quando conseguiu falar, sua voz falhou, sofrida.
– Achei que eu tivesse... não sei o que pensei.
Uma lágrima tocou o dedo de Lucy e ela a secou delicadamente.
– Agora acabou – disse ela. – Acabou tudo, e... – De repente, ela se deu conta do resto das
pessoas na sala. – Bem, eu acho que acabou – acrescentou, hesitante, sentando-se.
Seu tio estava morto? Tinha certeza de que tinha sido baleado. Por Gregory ou Richard, elanão sabia. Os dois haviam disparado.
Mas ele não fora mortalmente ferido. Havia se arrastado para o canto da sala e estava
encostado na parede, segurando o ombro e olhando para a frente com um ar derrotado.
Lucy fez uma cara feia para ele.
– A sua sorte é que ele não tem boa pontaria.
Gregory bufou de um jeito engraçado.
No canto, Richard e Hermione estavam abraçados e pareciam não ter se ferido. Lorde
Davenport berrava algo incompreensível e lorde Haselby – Deus do céu, seu marido – estava
encostado de forma indolente no batente da porta, observando a cena.
Ele olhou nos olhos dela e sorriu discretamente.
– Eu sinto muito – disse ela.
– Não sinta.
Gregory ficou de joelhos ao lado de Lucy, um braço protetor sobre o ombro dela. Haselby
observava a cena com evidente graça, e talvez também com um toque de prazer.
– Você ainda quer a anulação? – perguntou ele.
Lucy assentiu.
– Os papéis estarão prontos amanhã.
– Tem certeza? – disse ela, preocupada.
Ele era mesmo um homem adorável. Não queria que sua reputação sofresse com isso.
– Lucy!
Ela virou rapidamente para Gregory.
– Perdão. Não quis dizer... Eu só...
Haselby acenou com a mão.
– Por favor, não se preocupe. Foi a melhor coisa que poderia ter acontecido. Tiros,
chantagem, traição... Ninguém nunca vai olhar para mim como a causa da anulação agora.
– Ah. Bem, isso é bom – disse Lucy, alegremente. Ela se levantou, porque, bem, parecia
educado, tendo em vista como ele estava sendo generoso. – Mas você ainda deseja uma esposa?
Porque eu poderia ajudá-lo a encontrar uma. Assim que minha situação estiver resolvida, quero
dizer.
Gregory revirou os olhos.
– Santo Deus, Lucy.
Ela o viu se levantar.
– Sinto que devo consertar as coisas. Ele achou que tinha arrumado uma esposa. De certa
forma, isso não é justo.
Gregory fechou os olhos por um longo instante.
– Sorte sua que eu a amo tanto – falou, com um ar cansado. – Caso contrário, eu teria de lhe
colocar uma mordaça.
Lucy ficou de boca aberta.
– Gregory! – E então: – Hermione!
– Sinto muito! – exclamou Hermione, uma das mãos ainda sobre a boca para conter o riso. –
Mas vocês combinam perfeitamente.
Haselby entrou no quarto e estendeu um lenço para Abernathy.
– É melhor colocar isto no ferimento, para estancar o sangue – murmurou. Então virou de
novo para Lucy. – Não quero uma esposa, como você deve saber muito bem, mas imagino que
deva encontrar alguma maneira de procriar, ou o título ficará para o meu detestável primo. O que
seria uma pena. Sem dúvida a Câmara dos Lordes optaria por se dissolver, caso ele decidisseocupar o seu lugar.
Lucy só olhou para ele e piscou.
Haselby sorriu.
– Então, sim, eu ficaria grato se você me ajudasse a encontrar uma pessoa adequada.
– É claro – murmurou ela.
– Você vai precisar da minha aprovação também – vociferou lorde Davenport,
aproximando-se.
Gregory virou para ele com um ar muito evidente de aversão.
– E você pode calar a boca – disparou. – Agora.
Davenport recuou, num acesso de raiva.
– Você sabe com quem está falando, seu fedelho insolente?
Gregory estreitou os olhos.
– Com um homem em uma posição bastante precária.
– O que disse?
– Sua chantagem termina aqui e agora – ordenou Gregory.
Lorde Davenport acenou com a cabeça na direção do tio de Lucy.
– Ele era um traidor!
– E você decidiu não entregá-lo – retrucou Gregory –, o que imagino que o rei acharia
igualmente condenável.
Lorde Davenport cambaleou para trás, surpreso.
– Você vai deixar o país – disse Gregory ao tio de Lucy. – Amanhã. Para nunca mais voltar.
– Vou pagar a passagem dele – falou Richard. – E nada mais.
– Você é mais generoso do que eu conseguiria ser – murmurou Gregory.
– Quero que ele vá embora – disse Richard, com a voz tensa. – Se puder apressar a sua
partida, fico feliz em custear a despesa.
Gregory virou para lorde Davenport.
– Você nunca vai dizer uma palavra sobre isso. Entendeu? – Então olhou para Haselby. – E,
você, obrigado.
Haselby acenou graciosamente com a cabeça.
– Não posso evitar. Sou um romântico – disse, e depois deu de ombros. – Isso de vez em
quando dá confusão, mas não podemos mudar nossa natureza, podemos?
Gregory balançou a cabeça lentamente, enquanto um largo sorriso se abria em seu rosto.
– Você não tem ideia – murmurou, pegando a mão de Lucy.
Não podia suportar se separar dela naquele momento, nem que fossem apenas alguns
centímetros. Os dedos deles se entrelaçaram e Gregory a encarou. Os olhos de Lucy brilhavam
de amor, e ele sentiu uma vontade incontrolável e absurda de rir. Só porque podia. Só porque a
amava.
Nesse momento, notou que os lábios dela também estavam se contraindo nos cantos,
tentando conter o riso.
E então, bem ali, na frente daquele estranho grupo de testemunhas, ele a tomou nos braços e
a beijou com todas as forças de sua alma irremediavelmente romântica.
Depois de algum tempo – bastante tempo –, lorde Haselby pigarreou.
Hermione fingiu olhar para longe, e Richard disse:
– Sobre aquele casamento...
Com grande relutância, Gregory se afastou. Olhou para a esquerda, depois para a direita, em
seguida de volta para Lucy.E a beijou de novo.
Porque realmente tinha sido um dia bem longo, e ele merecia um pouco de prazer.
E também porque só Deus sabia quanto tempo ainda levaria até que pudesse se casar com
ela.
Mas, principalmente, ele a beijou porque...
Porque...
Gregory sorriu, tomando o rosto dela entre as mãos e encostando o nariz no dela.
– Eu te amo. Você sabe, não sabe?
Ela sorriu de volta.
– Eu sei.
Então ele enfim percebeu por que ia beijá-la novamente.
Só porque podia.

A Caminho Do AltarOnde histórias criam vida. Descubra agora