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Chegamos, agora, ao ponto a partir do qual a escola mais acadêmica de psiquiatras data a loucura de Charles Ward. Após a descoberta, o jovem logo examinara as páginas internas do livro e dos manuscritos e, evidentemente, vira alguma coisa que lhe causou tremenda impressão. Na verdade, após mostrar os títulos aos trabalhadores, ele pareceu proteger o texto com estranho cuidado e manifestar uma profunda inquietação que nem o significado arqueológico e genealógico do achado justificava. De volta para casa, deu a notícia com um ar quase sem graça, como se desejasse transmitir uma ideia de sua suprema importância, sem ter, porém, de exibir a prova. Nem sequer mostrou os títulos aos pais, mas disse-lhes apenas que encontrara alguns documentos escritos na caligrafia de Joseph Curwen, "a maioria em código", que precisavam ser estudados com extremo cuidado antes que ele pudesse revelar-lhes o verdadeiro significado. É improvável que houvesse mostrado qualquer trecho aos trabalhadores não fosse pela visível curiosidade destes. De certo modo, desejava, sem dúvida, ocultar qualquer manifestação de sigilo que contribuísse para estenderem a discussão sobre o assunto.

Naquela noite, Charles Ward ficou acordado no quarto, lendo o livro e os documentos recém-descobertos e, quando o dia clareou, continuou a ler. As refeições, segundo seu urgente pedido quando a mãe o procurou para saber o que estava acontecendo, foram servidas no quarto, e, à tarde, ele só apareceu por uns instantes quando os homens chegaram para instalar o retrato de Curwen e o painel da lareira no escritório. Na noite seguinte, dormiu de maneira intermitente, ainda vestido, enquanto lutava febrilmente para decifrar o manuscrito codificado. De manhã, a mãe o viu trabalhando na fotocópia do código de Hutchinson, que já lhe mostrara várias vezes, mas, em resposta à pergunta dela, limitou-se a dizer que a chave de Curwen não servia para decifrá-la. Naquela tarde, abandonou o trabalho e observou, com fascinação, os homens enquanto concluíam a instalação do quadro com o trabalho de madeira sobre lenhas elétricas que simulavam fogo com aspecto engenhosamente realista, fixando-o na lareira falsa como se atrás existisse uma chaminé, parecendo uma extensão do revestimento do escritório. O painel frontal, que continha a pintura, foi serrado e preso com dobradiças, a fim de deixar um espaço atrás do armário. Depois que os homens se foram, Charles transferiu o trabalho para o escritório e sentou diante do documento com metade da atenção no manuscrito e a outra metade no retrato, o qual parecia devolver-lhe a imagem como um espelho que envelhecia e remontava ao século passado.

Os pais, ao lembrar-se posteriormente do comportamento de Charles nesse período, deram interessantes detalhes com respeito à estratégia de encobrimento da atividade praticada por ele. Diante dos empregados, raras vezes escondia algum documento que estudava no momento, pois supunha, com razão, que a intrincada e arcaica caligrafia de Curwen lhes escapava à compreensão. Com os pais, contudo, era mais circunspeto, e a não ser que o manuscrito em questão fosse codificado, ou apenas uma massa de símbolos crípticos e ideogramas desconhecidos (como o intitulado "Àquele que Haverá de Vir Depois etc"), cobria-o com um papel até que a visita saísse do quarto. À noite, mantinha os papéis trancados num antigo armário, onde também os guardava sempre que saía do quarto. Não tardou a retomar os horários e hábitos regulares, embora houvesse interrompido as longas caminhadas e outros interesses externos. O reinício da escola, onde agora ia cursar o último ano, pareceu-lhe um grande tédio, e ele, muitas vezes, afirmou sua determinação a nunca mais frequentá-la. Dizia ter importantes pesquisas sociais a fazer, as quais lhe abririam mais acessos ao conhecimento e às ciências humanas que qualquer universidade que o mundo podia vangloriar-se.

Como seria de esperar, apenas alguém que sempre fora mais ou menos estudioso, excêntrico e solitário poderia seguir esse rumo durante muitos dias sem chamar a atenção. Como Ward, no entanto, era por natureza um estudioso e um ermitão, os pais ficaram menos surpresos que pesarosos com o rígido confinamento e o sigilo por ele adotados. Ao mesmo tempo, ambos consideravam estranha a atitude do filho de não lhes mostrar nem um fragmento de seu tesouro encontrado, e tampouco lhes desse a menor explicação referente aos dados já decifrados. Charles justificava esse silêncio como resultante de um desejo de aguardar até poder anunciar alguma descoberta completa; entretanto, com o passar de várias semanas sem outras revelações, passou a instalar-se entre o jovem e a família uma espécie de mal-estar, intensificado, no caso da mãe, por causa de sua manifesta desaprovação a tudo o que se relacionava a Curwen.

No decorrer de outubro, Ward começou, novamente, a visitar as bibliotecas, porém, já não mais buscava nelas as mesmas coisas que nos primeiros tempos. O que agora o interessava era bruxaria, magia, ocultismo e demonologia; e quando as fontes de Providence se revelavam infrutíferas, embarcava no trem para Boston e explorava a riqueza da imensa biblioteca de Copley Square, da Widener Library, em Harvard ou da Zion Research Library, em Brookline, onde se encontram, à disposição, certas obras raras sobre temas bíblicos. Além de comprar inúmeros livros, equipou o gabinete com todo um novo conjunto de prateleiras para as obras recém-adquiridas sobre temas sinistros, e nas férias de Natal, fez uma série de viagens fora da cidade, incluindo uma a Salém, para consultar alguns registros no Instituto Essex.

Em meados de janeiro de 1920, começou a se manifestar na atitude de Ward uma expressão de triunfo que ele não explicou, e já não o viam mais trabalhar no código de Hutchinson. Em vez disso, passou a empreender uma dupla atividade de pesquisa química e análise de registros, instalando para a primeira um laboratório no sótão desocupado da casa e para a última, caçando todas as fontes de estatísticas vitais em Providence. Os fornecedores de drogas e de instrumentos científicos da cidade, interrogados tempos depois, apresentaram catálogos espantosamente estranhos e sem sentido das substâncias e instrumentos que ele comprou, mas os funcionários da assembleia legislativa, da Prefeitura e de várias bibliotecas concordam quanto ao objeto definido de seu segundo interesse. Ward procurava, de maneira intensa e febril, o túmulo de Joseph Curwen, de cuja lápide uma geração mais antiga, apagara com tanta sensatez o nome.

Aos poucos, intensificou-se na família Ward a convicção de que havia algo anormal. Embora Charles já houvesse antes manifestado excentricidades e mudanças de interesses menores, o sigilo e a absorção cada vez maiores em atividades estranhas eram contrários ao seu jeito de ser. O trabalho escolar consistia em total simulação; e, apesar de passar em todas as provas, era visível que a antiga aplicação desaparecera por completo. Ele tinha outros interesses agora; quando não no laboratório com uma vintena de livros antiquados de alquimia, podia-se encontrá-lo estudando, com toda a atenção, velhos registros funerários no centro da cidade ou vê-lo colado aos volumes de saber oculto em seu escritório, onde as feições espantosamente, e cada vez mais semelhantes às de Joseph Curwen, encaravam-no com brandura do grande painel acima da lareira na parede norte.

No fim de março, Ward acrescentou à sua busca em arquivos uma série de excursões aos vários cemitérios antigos da cidade. A causa surgiu depois, quando funcionários da Prefeitura informaram que ele, na certa, encontrara uma importante pista. Desviara-se, de repente, da procura do túmulo de Joseph Curwen para o de certo Naphthali Field; essa mudança foi explicada quando os investigadores, ao examinarem os arquivos que ele pesquisara, encontraram, de fato, algo sobre seu enterro que escapara à determinação geral de apagar toda lembrança referente a Curwen: um registro fragmentado, no qual se declarava que o estranho caixão de chumbo fora enterrado "3 metros ao sul e 1,5 metros a oeste do túmulo de Naphthali Field no —". A ausência de um cemitério especificado na anotação sobrevivente complicou imensamente a procura, e o túmulo de Naphthali parecia tão esquivo quanto o de Curwen; no caso do primeiro, contudo, não ocorrera uma eliminação sistemática de dados, e seria razoável esperar encontrar a própria sepultura ainda que seu registro houvesse desaparecido. Por conseguinte, as excursões — das quais se exluíram o cemitério de St. John (antigo King) e o antigo cemitério da Congregação, no meio do cemitério de Swan Point, visto que outras estatísticas haviam mostrado que o único Naphthali Field (falecido em 1729), a quem podia referir-se à anotação, era batista.

O Caso de Charles Dexter Ward (1943)Onde histórias criam vida. Descubra agora