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MUTAÇÃO E LOUCURA

Na semana seguinte àquela memorável Sexta-Feira Santa, Charles Ward foi visto com mais frequência que o habitual e sempre carregando livros entre sua biblioteca e o laboratório no sótão. Embora essas ações fossem tranquilas e racionais, desprendia-se de seu semblante uma expressão furtiva e assustada que desagradava à mãe. Além disso, adquiriu um apetite de incrível voracidade, proporcional às exigências que passara a fazer ao cozinheiro. O dr. Willett foi informado dos ruídos e acontecimentos daquela sexta-feira e, na terça-feira seguinte, teve uma conversa com o jovem na biblioteca onde o quadro já não mais encarava. Como sempre, a entrevista em nada resultou; ainda assim, Willett dispõe-se a jurar que o jovem continuava são na época. Prometeu fazer uma revelação em breve e falou da necessidade de encontrar um laboratório em outro lugar. Lamentou muito pouco a perda do retrato, levando-se em conta o entusiasmo inicial pela obra, parecendo, ao contrário, achar certa graça de sua repentina desintegração.

Na segunda semana, Charles começou a ausentar-se de casa por longos períodos, e um dia, quando Hannah, a boa e idosa preta, apareceu para ajudar na limpeza da primavera, ela comentou sobre as frequentes visitas dele à velha casa de Olney Court, aonde chegava com uma grande valise e efetuava estranhas buscas na adega. O jovem era muito generoso com ela e o velho Asa; contudo, achou-o mais preocupado que o habitual, o que muito a afligia, pois cuidara dele desde o nascimento. Outra notícia sobre suas ações veio de Pawtuxet, onde alguns amigos da família o haviam visto, de longe, um número surpreendente de vezes. Parecia frequentar o balneário e o hangar de canoas de Rhodes-on-the-Pawtuxet, e indagações posteriores do dr. Willett naquele lugar revelaram que tinha como finalidade constante garantir acesso à margem do rio bem guardada por cercas, pela qual caminhava em direção ao norte, em geral, só reaparecendo muito tempo depois.

Em fins de maio, ouviu-se uma repetição momentânea dos sons ritualísticos no laboratório do sótão que provocou uma severa reprovação do sr. Ward e a vaga promessa de emendar-se feita por Charles. Ocorreu numa manhã, e parecia constituir uma retomada da conversa imaginária daquela turbulenta Sexta-Feira Santa. O jovem discutia ou protestava violento consigo mesmo, pois, de repente, irrompeu uma série bastante perceptível de alaridos em diferentes inflexões de voz, como exigências e negativas alternadas, o que fez a sra. Ward precipitar-se escada acima e prestar atenção junto à porta. Não conseguiu ouvir mais que um fragmento cujas únicas palavras claras foram "tem de mantê-lo vermelho por três meses", e tão logo ela bateu na porta todos os sons logo cessaram. Quando indagado pelo pai mais tarde, Charles disse que existiam certos conflitos entre as diversas esferas da consciência que só uma grande habilidade conseguia resolver, mas que ele ia tratar de transferir-se para outro lugar.

Em meados de junho, ocorreu um misterioso incidente noturno. À noitinha, chegaram alguns ruídos e baques surdos vindos do laboratório no sótão, e o sr. Ward já ia investigar, quando, de repente, tudo silenciou. À meia-noite, depois que a família se recolhera, o mordomo trancava a porta da frente da casa quando, segundo sua declaração, Charles surgiu meio aturdido e instável no pé da escada com uma enorme mala e fez-lhe sinais que desejava sair. Embora o jovem nada tenha dito, o digno mordomo natural de Yorkshire lhe vislumbrou os olhos febris e estremeceu sem saber por quê. Abriu a porta e Ward saiu, mas, de manhã, apresentou seu pedido de demissão à sra. Ward. Explicou que se desprendeu alguma coisa terrível do olhar fixo com o qual Charles o encarara. Não era a forma correta de um jovem cavalheiro olhar uma pessoa honrada, e ele não se dispunha a passar nem mais uma noite ali. A sra. Ward permitiu que ele partisse, porém, não deu muita importância à sua afirmação. Era ridículo imaginar Charles alterado naquela noite, pois, por todo o tempo em que ela permanecera acordada, ouvira sons fracos vindos do laboratório acima, sons como se soluçasse e andasse de um lado para o outro, além do exalar de um suspiro que indicava o mais profundo dos desesperos. A sra. Ward habituara-se a prestar atenção aos ruídos da noite, pois o mistério que envolvia o filho logo lhe afugentava tudo o mais da mente.

O Caso de Charles Dexter Ward (1943)Onde histórias criam vida. Descubra agora