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Então, em 15 de abril, aconteceu um estranho incidente. Embora nada parecesse diferente no cenário, houve, com certeza, uma diferença bastante terrível em grau, e o dr. Willett de certa forma atribui grande importância à mudança. Era Sexta-Feira Santa, circunstância que motivou muitos comentários dos empregados, mas que outros descartam como uma coincidência irrelevante. No fim da tarde, o jovem Ward começou a repetir certa fórmula numa voz singularmente alta, ao mesmo tempo em que queimava uma substância tão pungente que os vapores escaparam por toda a casa. A fórmula era ouvida com tanta nitidez no corredor, defronte à porta trancada, que a sra. Ward não pôde deixar de decorá-la enquanto esperava, a escutar ansiosa, e depois conseguiu escrevê-la a pedido do dr. Willett. Os especialistas comentaram com o médico que se pode encontrar um texto muito semelhante nos escritos místicos do famoso ocultista "Eliphas Levi", espírito misterioso que se infiltrou por uma fenda da porta proibida e teve um rápido vislumbre das terríveis visões do vazio além. Dizia o seguinte:

"Per Adonai Eloim, Adonai Jehova,

Adonai Sabaoth, Metraton On Agla Mathon,

verbum pythonicum, mysterium salamandrae,

conventus sylvorum, antra gnomorum,

daemonia Coeli God, Almousin, Gibor, Jehosua,

Evam, Zariathnatmik, veni, veni, veni."

Fazia duas horas que a ladainha prosseguia sem modificação ou interrupção quando, de repente, iniciou-se por toda a redondeza um pandemônio de uivos de cachorros. A extensão desses uivos pode ser julgada pelo espaço que recebeu nos jornais no dia seguinte, mas para os presentes na casa dos Ward foi ofuscada pelo odor que logo se seguiu: um odor medonho que tudo permeou, e que nenhum deles jamais sentiu antes nem depois. Em meio a essa inundação fétida, elevou-se um clarão muito nítido como o do relâmpago, que decerto teria deslumbrado e cegado se não fosse pela luz do dia ao redor; e então, ouviu-se a voz que nenhum ouvinte jamais poderá esquecer devido ao estrondoso distanciamento, a incrível profundidade e a dessemelhança sobrenatural da voz de Charles Ward. Além de sacudir a casa, foi ouvida com toda nitidez por pelo menos dois vizinhos, apesar do uivo canino. A sra. Ward, que ficara ouvindo desesperada diante da porta trancada do laboratório do filho, sentiu calafrios ao reconhecer-lhe o significado satânico, pois Charles lhe contara sobre a má fama nos livros secretos e como retumbara, segundo as cartas de Fenner, quando a ouviram acima da fazenda Pawtuxet, condenada à destruição na noite do aniquilamento de Joseph Curwen. Era impossível se enganar em relação àquela frase de pesadelo, pois Charles a descrevera de forma bem vívida na época em que partilhava com franqueza as investigações Curwen. Tratava-se, porém, do seguinte fragmento de uma língua arcaica e esquecida: "DIES MIES JESCHET BOENE DOESEF DOUVEMA ENITEMAUS".

Assim que se extinguiu a voz estrondosa, escureceu por uns instantes a luz do dia, embora ainda faltasse uma hora para o pôr do sol, e, em seguida, mais uma baforada de odor surgiu, diferente do primeiro, mas também fétido e intolerável. Charles recomeçava a cantar em tom repetitivo e monótono, e a mãe ouvia sílabas que soavam assim: "Yi-nash-Yog-Sothoth-he-lgeb-fi-throdog", terminando com um "Yah!", cuja força ensandecida elevava-se de forma ensurdecedora. Instantes depois, todas as lembranças do impacto anterior se desfizeram com a frenética explosão de um grito lastimoso, o qual, aos poucos, se transformou num paroxismo de gargalhadas diabólicas e histéricas. A sra. Ward, impelida pelo medo misturado à cega coragem própria da maternidade, adiantou-se e bateu, apavorada, nos painéis de madeira que a ocultavam, mas não obteve nenhuma resposta. Tornou a bater, mas se interrompeu acovardada quando se elevou um segundo grito estridente, este na voz inconfundível e conhecida do filho, que ressoava em uníssono com as risadas de escárnio ainda a eclodir. Nesse momento, ela desmaiou, embora continue sem condições de lembrar a causa precisa e imediata. Misericordiosa a memória que às vezes apaga lembranças dolorosas.

O Caso de Charles Dexter Ward (1943)Onde histórias criam vida. Descubra agora