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Na manhã seguinte, o dr. Willett saiu às pressas para a residência dos Ward, a fim de estar presente quando os detetives chegassem. Em sua opinião, a destruição ou prisão de Allen — ou de Curwen, se o médico pudesse encarar como válida a tácita pretensão do barbudo a ser a reencarnação dele — devia ser levada a cabo a qualquer custo e comunicou essa convicção ao sr. Ward, enquanto esperavam a chegada dos homens no térreo da casa, porque os andares superiores começavam a ser evitados por causa de uma fetidez nauseante que pairava indefinidamente, uma fetidez que os empregados mais antigos associavam a alguma maldição deixada pelo retrato desaparecido de Curwen.

Às 9h, os três detetives apresentaram-se e comunicaram de imediato tudo o que tinham a dizer. Não haviam, lamentavelmente, localizado o português Tony Gomes, de Brava, como desejavam, e tampouco encontrado o menor vestígio da origem do dr. Allen nem de seu atual paradeiro, mas haviam conseguido descobrir um considerável número de impressões e fatos locais referentes ao calado estrangeiro. Allen impressionara os vizinhos de Pawtuxet como um ser vagamente sobrenatural. Tratava-se de uma crença generalizada em que aquela basta barba cor de areia fosse tingida ou postiça — crença que se revelou conclusiva pela descoberta de uma barba postiça junto a um par de óculos escuros em seu quarto no fatídico bangalô. A voz, o sr. Ward podia testemunhar pela única conversa telefônica que tivera com ele, tinha um timbre profundo e cavernoso que não lhe saía da lembrança, e o olhar parecia maligno mesmo através dos óculos escuros com aro de tartaruga. Um dono de loja, durante negociações com Allen, vira uma amostra de sua caligrafia e declarou que era muito estranha e intrincada, declaração confirmada pelas anotações a lápis de um significado bastante confuso, e que também haviam sido encontradas em seu quarto e identificadas pelo lojista. Em relação aos rumores de vampirismo do verão anterior, a maioria dos mexeriqueiros acreditava que Allen, em vez de Ward, era o verdadeiro vampiro. Também se obteve declarações dos policiais que haviam visitado o bangalô após o desagradável incidente do roubo do caminhão. Embora não houvessem detectado algo de sinistro no dr. Allen, reconheceram-no como a figura dominante no sombrio bangalô. O lugar estava escuro demais para que eles o pudessem observar com mais nitidez, mas o reconheceriam se tornassem a vê-lo. A barba lhes parecera estranha, e eles acreditavam ter visto uma leve cicatriz acima do olho direito coberto pelos óculos escuros. Quanto à busca no quarto de Allen, os detetives não encontraram nada decisivo, a não ser a barba e os óculos, além de várias anotações a lápis numa letra intrincada, a qual Willett logo viu que se tratava da caligrafia idêntica à dos manuscritos do velho Curwen e à das volumosas anotações do jovem Ward, descobertas nas desaparecidas catacumbas de horror.

O dr. Willett e o sr. Ward sentiram-se tomados por um medo cósmico profundo, sutil e insidioso por conta desses dados, assim que estes se desdobraram gradualmente e quase estremeceram quando uma vaga e descabida ideia lhes surgiu na mente ao mesmo tempo. A barba falsa e os óculos — a caligrafia intrincada de Curwen —, o antigo retrato com a minúscula cicatriz — e o jovem alterado no hospital com igual cicatriz —, a voz profunda e oca ao telefone —... não foi disso que o sr. Ward se lembrou quando o filho se pôs a emitir aqueles latidos em tom deplorável, aos quais afirmou estar reduzida sua voz agora? Quem algum dia vira Allen e Charles juntos? Sim, os policiais, apenas uma vez, mas quem mais dali em diante? Não foi depois da partida de Allen que Charles de repente perdeu aquele medo crescente e começou a morar em tempo integral no bangalô? Curwen — Allen — Ward —: em que fusão sacrílega e abominável duas idades e duas pessoas haviam se envolvido? Aquela diabólica semelhança do retrato com Charles — o tempo todo não observava e seguia com os olhos o rapaz pelo quarto? Por que, também, Allen e Charles copiavam a caligrafia de Joseph Curwen, mesmo quando sozinhos e desprevenidos? E depois o trabalho apavorante daqueles homens — a cripta de horrores desaparecida, que envelhecera o médico da noite para o dia; os monstros que morriam de fome nos poços fedorentos; a terrível fórmula que produzira tão inomináveis resultados; o bilhete em minúsculas encontrado no bolso de Willett; os documentos e as cartas, além de toda aquela conversa sobre túmulos, "sais" e descobertas — aonde levava tudo isso? Por fim, o sr. Ward tomou a decisão mais sensata. Fortalecendo-se contra qualquer compreensão do motivo que o levara a tomá-la, entregou aos detetives um item para que o mostrassem aos lojistas de Pawtuxet que haviam visto o agourento dr. Allen. Consistia numa fotografia do malfadado filho, na qual ele desenhara com esmero, à tinta, o par de pesados óculos e a barba preta e pontuda que os homens haviam trazido do quarto de Allen.

O Caso de Charles Dexter Ward (1943)Onde histórias criam vida. Descubra agora