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Uma escola de psiquiatras, um tanto menos acadêmica que a do dr. Lyman, determina o início de sua verdadeira loucura na viagem europeia de Ward. Admitindo que se tratasse de um rapaz são ao partir, acreditam que sua conduta ao retornar indica uma desastrosa mudança. Mas o dr. Willett recusa-se a concordar com essa afirmação. Insiste em que aconteceu alguma coisa depois e atribui as esquisitices do jovem, nessa fase, à prática de rituais aprendidos no exterior — coisas bastante estranhas, de fato, mas que em absoluto envolvem aberração mental por parte do celebrante. Ward, embora visivelmente envelhecido e calejado, continuava normal em suas reações gerais e, em várias conversas com Willett, exibira um equilíbrio que nenhum louco — mesmo um incipiente — poderia fingir de maneira continuada por muito tempo. O que originou a ideia de insanidade nesse período foram os sons provenientes em todas as horas do laboratório de Ward no sótão, onde permanecia trancado quase o tempo todo. Ouviam-se cânticos, repetições e estrondosas declamações em ritmos sinistros; e embora fosse sempre a voz dele que proferia os sons, discernia-se algo no timbre e nas inflexões dessa voz que só podia gelar o sangue de qualquer ouvinte. Notou-se que Nig, o venerando e adorado gato preto da família, eriçava-se e arqueava o dorso quando se ouviam certos sons.

Os odores que de vez em quando emanavam do laboratório também eram muitíssimo estranhos. Ás vezes, eram bem nocivos, porém, com mais frequência aromáticos, com um quê pungente e elusivo que parecia ter o poder de induzir imagens fantásticas. As pessoas que os aspiravam tinham uma tendência a vislumbrar miragens momentâneas de imensas paisagens, com estranhas colinas ou infindáveis avenidas de esfinges e hipogrifos que se estendiam infinito afora. Embora Ward não retomasse as andanças dos velhos tempos, aplicou-se com zelo aos estranhos livros que trouxera para casa e a atividades igualmente estranhas nos próprios aposentos, explicando que as fontes europeias haviam ampliado bastante as possibilidades de seu trabalho e prometendo grandes revelações nos anos futuros. O envelhecimento prematuro lhe aumentou de forma incrível a semelhança com o retrato de Curwen na biblioteca; o dr. Willett, muitas vezes, parava diante da imagem depois de uma visita e se maravilhava com a identidade quase perfeita, refletindo que permanecia apenas a pequena marca sobre o olho direito do retrato para diferenciar o bruxo morto há muito do jovem vivo. Essas visitas de Willett, feitas a pedido dos pais, eram um tanto curiosas. Ward em momento algum expulsou o médico; no entanto, o último percebia que jamais conseguiria compreender-lhe a psicologia íntima. Quase sempre notava coisas peculiares no gabinete: pequenas imagens de cera de desenho grotesco nas estantes ou nas mesas, além dos vestígios semiapagados de círculos, triângulos e pentagramas em giz ou carvão no espaço central desocupado do grande aposento. E sempre, à noite, retumbavam aqueles ritmos e fórmulas encantatórias até que se tornou muito difícil conservar os empregados ou abafar com o falatório furtivo sobre a loucura de Charles.

Em janeiro de 1927, ocorreu um raro incidente. Um dia, por volta da meia-noite, enquanto Charles salmodiava um ritual cuja cadência sobrenatural repercutia de maneira desagradável nos andares mais baixos da casa, soprou de repente da baía uma lufada de vento gelado, seguido de um ligeiro e inexplicável tremor de terra que todo mundo na vizinhança sentiu. Ao mesmo tempo, o gato começou a exibir espantosos sinais de terror, enquanto os cachorros se puseram a latir em mais de um quilômetro ao redor. Era o prelúdio de um violento temporal com relâmpagos e trovões, atípica naquela estação, que desencadeou uma pancada tão estrepitosa que o casal Ward achou que houvesse atingido a casa. Precipitaram-se escada acima até o sótão para ver a extensão dos danos, mas Charles os recebeu na porta, pálido, resoluto e solene, com uma combinação quase assustadora de triunfo e seriedade no rosto. Tranquilizou-os o fato de que a casa não fora atingida e que a tempestade logo cessaria. Eles pararam e, após olhar pela janela, viram que o filho tinha razão, pois o relampejar chamejava cada vez mais longe, e as árvores deixaram de se vergar na estranha lufada gelada proveniente do mar. O estrondo dos trovões diminuiu de intensidade até se tornar um tipo de risadinhas murmuradas e, por fim, extinguiu-se. As estrelas surgiram, e o ar de triunfo no rosto de Charles Ward imobilizou-se numa expressão muito excêntrica.

Durante dois ou mais meses depois desse incidente, Ward passou a ficar menos confinado no laboratório que o habitual. Exibia um singular interesse pelo tempo e fazia perguntas estranhas sobre a época do degelo primaveril no terreno. Numa noite, em fins de março, saiu de casa quando já passava da meia-noite e só voltou quase ao amanhecer, quando a mãe, acordada, ouviu o ronco de um motor subir até a entrada para carros. Distinguiam-se imprecações abafadas, e a sra. Ward, ao se levantar e se dirigir à janela, viu quatro vultos escuros retirarem uma caixa comprida e pesada de um caminhão sob a orientação de Charles, transportando-a ao interior da casa pela porta lateral. Ouviu, então, respirações ofegantes e passos pesados nos degraus e, por fim, um baque surdo no sótão, após o qual os passos tornaram a descer, os quatro homens reapareceram fora de casa e partiram no caminhão.

No dia seguinte, Charles reiniciou a estrita reclusão no sótão, baixou as venezianas escuras das janelas do laboratório e, ao que parece, começou a trabalhar em alguma substância metálica. Não abria a porta para ninguém e recusava categórico toda comida oferecida. Ao meio-dia, ouviu-se ruído lancinante ao qual se seguiram um grito terrível e uma queda, mas quando a sra. Ward bateu na porta, o filho, após um longo tempo, respondeu, enfraquecido, que não houve nada de errado e que o fedor repugnante e indescritível que agora se desprendia do sótão afora era inócuo e infelizmente necessário. A experiência lhe exigia isolar-se como o elemento fundamental, e ele desceria atrasado para o almoço.

Naquela tarde, findos os estranhos sons sibilantes saídos por detrás da porta trancada, ele acabou aparecendo com um aspecto bastante extenuado, quando proibiu a entrada no laboratório de qualquer pessoa sob qualquer pretexto. Tratava-se, na verdade, do início de uma nova estratégia de sigilo, pois, daí em diante, nunca mais tornaria a permitir que alguém visitasse a misteriosa sala de trabalho na água-furtada nem o depósito adjacente que ele limpara, mobiliara de maneira tosca e acrescentara ao seu domínio de inviolável intimidade como um aposento onde dormir. Ali, viveu com os livros trazidos da biblioteca do andar de baixo até comprar o bangalô de Pawtuxet e para lá se mudou com todas as posses científicas.

Escavadores Noturnos Surpreendidos no Cemitério Norte

Robert Hart, guarda-noturno do Cemitério Norte, descobriu, nessa manhã, um grupo de vários homens com um caminhão na parte mais antiga do cemitério; entretanto, parece que os afugentou antes de perpetrarem o ato que se propunham.

A descoberta ocorreu por volta das 4h da manhã, quando o ruído de um motor do lado de fora do abrigo atraiu a atenção de Hart. Ao investigar, viu um caminhão grande na entrada principal a vários metros de distância, mas não conseguiu alcançá-lo, pois logo o ruído de seus passos lhe revelara a presença. Os homens atiraram depressa uma grande caixa no caminhão e saíram em direção à rua antes que o guarda pudesse detê-los; visto que não se remexeu em nenhum túmulo conhecido, Hart acredita que a tal caixa era o objeto que eles desejavam enterrar.

Os escavadores deviam estar em ação fazia um longo tempo antes de serem flagrados, porque Hart encontrou um enorme buraco a uma distância considerável da pista no lote de Amasa Field, onde a maioria das antigas lápides há muito desapareceu. O buraco, tão largo e profundo como uma sepultura, estava vazio; e não coincidia com nenhum enterro citado nos registros do cemitério.

Na opinião do sargento Riley, do Segundo Posto Policial, que examinou o local, o buraco foi escavado por contrabandistas que, de forma revoltante e engenhosa, procuravam um esconderijo seguro para as bebidas num lugar improvável de ser perturbado. Em resposta às perguntas, Hart disse achar que o caminhão fugitivo rumara para a Rochambeau Avenue, embora não tivesse certeza.

Nos dias seguintes, a família quase não viu Charles Ward. Após anexar um aposento para dormir ao reino no sótão, isolava-se ali, com ordens para que levassem a comida até a porta, e a pegava apenas depois que o empregado se retirava. O zumbido de fórmulas encantatórias e a entoação de ritmos estranhos repetiam-se a intervalos, enquanto, em outros momentos, os ouvintes ocasionais detectavam o tinido de vidros, silvos de substâncias químicas, ruídos de água corrente ou de chamas de gás. Odores do tipo mais indefinível, diferentes de quaisquer outros sentidos anteriormente, às vezes, pairavam em volta da porta; e o ar de tensão observável no jovem recluso sempre que se aventurava a sair por breves instantes era tal que provocava as mais veementes especulações. Uma vez, deu uma rápida saída até a biblioteca Athenaeum para pegar um livro que necessitava e depois, em outra ocasião, contratou um mensageiro para buscar um volume muitíssimo obscuro em Boston. Toda essa situação suscitava uma profunda ansiedade a respeito da qual tanto a família quanto o dr. Willett se confessavam totalmente sem saber o que pensar ou fazer.

O Caso de Charles Dexter Ward (1943)Onde histórias criam vida. Descubra agora