Despedaçada

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Eram por volta das onze da noite: Taehyung tinha deixado Jimin dormindo no quarto enquanto ia pra cozinha arrumar alguma coisa pra ele comer caso acordasse. Como tinha ficado fora com o amigo de infância durante todo o dia, não pôde preparar uma janta, como vinha fazendo, então sua mãe e a senhora Park decidiram sair pra jantar fora.

Nem acendeu as luzes, apenas puxou da geladeira uma bandejinha de morangos, uma garrafa d'água e então rumou para as escadas.

Eram por volta das onze da noite: a casa estava escura, Jimin estava dormindo e as senhoras não estavam em casa, e acima de tudo, Taehyung estava com coisa demais na cabeça, depois de tudo que Jimin tinha lhe contado no hotel. Pra Jimin foi uma confissão, que Taehyung recebeu como um desabafo. E era coisa demais. Sua infância, que praticamente havia o moldado, seus amigos e aquela casa com aquele nostálgico cheiro de rosas, ela de repente estava muito escura.

Porque eram onze horas, e mesmo que não não estivesse escuro demais a ponto de Taehyung não ver seus próprios pés subindo as escadas, um palmo à sua frente, ele estava envolvido num breu suficiente pra não perceber a presença a um braço de distância atrás de si, subindo as escadas no seu encalço, em silêncio.

Envolvido nos próprios pensamentos, que naquele momento era um turbilhão de idéias confusas numa noite escura, Taehyung só parou quando já estava no curto corredor que levava aos quartos, no andar de cima, depois de ouvir o estalo no chão de taco de um passo que não era o seu.

— Mãe? — Virou-se, num milésimo de segundo se perguntando se, talvez, não fosse ela quem tivesse voltado com a melhor amiga muito cedo, sem que as tivesse ouvido entrar por distração. Mas aquele vulto não era dela: aquela silhueta fina, alta em saltos longos.

— Não... — Flor acendeu um isqueiro, bem ao lado do rosto bonito, desfigurado num sorriso sinistro e pintado de vermelho — Não é a mamãe, Taetae — uma lâmina comprida de uma faca de cozinha reluziu a fraca luz que vinha da chama em sua mão esquerda — Não dessa vez.

— Né, né, Jimin — A pequena Flor veio aos saltitos, balançando as fitas vermelhas dos laço amarrados aos cabelos — Vamos jogar xadrez?

— Agora não, Florzinha... — Jimin recusou, com ar cansado, apesar da garota já estar pondo o tabuleiro à sua frente e ajeitando as peças sobre ele — Eu estava lendo... — Reclamou, chateado, mas já rendido, pondo a revista em quadrinhos de lado — Poxa, você sempre faz isso...

— Ah, mas dessa vez você realmente tem que jogar comigo.

— Mas por quê?

— Porque o rei das suas peças é a minha vida — Ela disse, sorrindo — Que eu vou tentar derrubar, por isso você vai ter que proteger.

— Su-sua vida? — Olhou para o rei do seu lado do tabuleiro, se estendendo imponente sobre as outras peças, tão frágil e pequeno, mas aterrorizante, de alguma maneira. Sentiu medo — Co-como assim sua vida?

— Eu sou as brancas — Florzinha ignorou completamente seus questionamentos — Eu começo.

Jimin começou a jogar, então: a jogar o jogo dela, reticente, apreensivo, suando frio, porque daquela vez ela estava jogando sério, mesmo que rindo, de uma forma doente, do outro lado daquele tabuleiro de pretos e brancos tão bem definidos.

E Jimin estava jogando, obrigado sem nenhuma razão, como sempre havia sido. Talvez porque Flor saísse correndo chorando pra algum adulto se ele recusasse, na verdade esse era o motivo, mas daquela vez sabia que a situação era mais grave. Sim, a situação era mais grave, porque tinha um coração batendo dentro daquela peça oca de xadrez, e ele simplesmente não sabia o que fazer que não fosse obedecer e jogar calado, mesmo que não gostasse de xadrez, porque aquele jogo durava horas, e ele já estava cansado.

Jimin já estava cansado, debilitado, com sono; já haviam sido derrubadas peças de ambos os lados, quando algo externo ao jogo aconteceu: Taehyung veio, correndo, tropeçou e esbarrou no tabuleiro, derrubando com ele todas as peças no chão.

Mas não, não eram peças que estavam caindo. Eram morangos, um por um, caindo, no chão de taco.

Jimin acordou num salto, com o coração acelerado, como se já soubesse de tudo mesmo sem ter visto. Ele não deveria ter contado, ele sabia. Era como uma maldição: foi a primeira vez desde que começara o jogo que ele pediu socorro, e ela voltou pra tirar satisfação, como faria o próprio diabo depois de assinar um contrato.

Saiu do quarto, aos tropeços, no escuro, e antes que pudesse chamar por Taehyung o que viu no breu da noite não foram mais que vultos caindo, mas ouviu muito nitidamente: o som das vigas de madeira do parapeito quebrado se partindo, e então a queda.

De fato, algumas vigas do parapeito de madeira antigo do andar de cima tinham se partido não fazia nem três dias, quando Taehyung ameaçou se jogar dali, defendendo a dignidade da amiga de infância. Agora aquele pedaço do parapeito estava desfeito, e Taehyung e Flor estavam lá embaixo. Jimin correu escada abaixo, podendo ver finalmente sob a fraca luz noturna que entrava pela ampla janela da sala uma faca, um isqueiro, um Taehyung caído e uma Flor de joelhos, em prantos.

— E-eu não queria!... — Ela chorava, ao mesmo tempo em que gritava, num desespero de histeria — Ele me segurou, eu dei um passo pra trás e ele se jogou comigo!... Taehyung! — O chacoalhou com as mãos nos seu peito — Po-por que você fez isso??

— Por...quê?... — Taehyung perguntou com a voz fraca, obviamente debilitado. Jimin se aproximou e se agachou sobre um joelho perto dele, vendo uma poça escura tomar forma e aumentar sob a sua cabeça: no escuro não parecia mais que uma enorme mancha de nanquim no carpete, mas o cheiro de sangue o fez enxergar o vermelho vivamente — Porque eu não queria que você se machucasse — Então disse, como se fosse óbvio — Eu nunca quis...

Flor sequer conseguiu falar mais, tremendo dos pés à cabeça agora. Tinha ameaçado o matar não fazia nem dois minutos, e estava tão convicta de que realmente o faria, mas então errou o golpe, Taehyung segurou seu pulso, ela deu um passo pra trás, jogando todo seu peso sobre o parapeito que quebrou: e Taehyung, sem pensar duas vezes, a abraçou durante a queda e girou, e absorveu no chão todo o impacto dos dois. Ver todo aquele sangue se espalhando, e o contorno dele ali, todo desconjuntado, caído como um boneco quebrado: foi como um tapa muito forte numa flor frágil, como se ela tivesse de repente acordado de um sonho muito longo, mas muito real, ao mesmo tempo que confuso.

— Você sempre foi muito mimada, Flor... mas o que você fez com o Jiminnie não foi legal, sabe... — Já Taehyung falava como se estivesse bem: falava como falava com ela antes, quando eram crianças — Ameaçar ele com a própria vida pra ele fazer o que você quer passou dos limites...ugh — Tossiu — O Jimin é quem estava certo, Flor... nós já crescemos... — Tentou estender o braço pra tocar no rosto dela, sentindo as lágrimas da moça pingarem e escorrerem na sua clavícula — Adultos que ainda são crianças é algo assustador...

Jimin não tocou em Taehyung naquele momento, temendo a dor que ele estava sentindo, e fez bem, porque Taehyung logo desmaiou de dor: só acordou na tarde do dia seguinte, deitado na maca do hospital, com os dedos da mão direita entrelaçados nos da mão esquerda de Jimin, de vigília ao seu lado. 

More than friends - VminOnde histórias criam vida. Descubra agora