Josh
Natal.
Ele odiava o Natal.
Odiava cada Papai Noel sorridente, cada nota dissonante das músicas que estourava nas lojas e cada floco congelante de neve. Odiava a neve especialmente. Ela descia rodopiando com sua inocência enganadora, cobrindo árvores e carros, pousando nas mãozinhas de crianças que, encantadas, viam a neve cair e pensavam em passeios de trenó e bonecos de neve.
Josh pensava em algo diferente.
Ele estava sentado na penumbra de seu apartamento na 5a Avenida, encarando a vastidão invernal do Central Park.Nevava sem parar havia vários dias e vinha ainda mais neve pela frente. A previsão do tempo anunciou que seria a pior nevasca da história recente de Nova York.
O resultado disso era que as ruas estavam extraordinariamente vazias. Quem não estivesse em casa estava correndo o máximo possível para chegar, aproveitando o transporte público enquanto ele ainda estava funcionando. Ninguém levantava o olhar. Ninguém sabia que ele estava ali em cima. Nem sua bem-intencionada mas intrometida família, que o imaginava em Vermont, em um retiro de escrita.
Se soubessem que Josh estava em casa, ficariam em cima mandando mensagens, o forçariam a participar dos planos para a festa de Natal.
Já era tempo, diriam. Você se afastou por tempo demais.
Quanto tempo era "demais"? A resposta lhe fugia. Tudo o que Josh sabia era que não havia atingido esse ponto.
Não tinha intenção de celebrar as festas de fim de ano. No máximo, podia torcer para sobreviver a elas, como todos os anos, e não via sentido em infligir sua tristeza aos outros.
Josh estava machucado. Estava machucado por dentro e por fora. Ele ficou esmagado, mutilado sob os escombros de sua perda, e rastejou de volta com muito pouco além de sua vida.
Ele poderia ter viajado para Vermont, se enterrado em uma cabana na floresta nevada, como disse aos pais, ou poderia ter ido a algum lugar quente, intocado por todo e qualquer floco de neve, mas sabia que não fazia diferença, pois sua dor continuaria. Não importaria o que fizesse, a dor viajaria consigo. Ela o infectava como um vírus incurável.
Por isso ficou em casa enquanto a temperatura despencava e o mundo à sua volta ficava branco, transformando seu prédio em uma fortaleza de gelo.
O que lhe convinha bastante.
O único som que se intrometia vinha do celular. O aparelho tocou 14 vezes nos últimos dias e Josh ignorou todas as ligações. Algumas delas vieram de sua avó, algumas de seu irmão, a maioria de seu agente.
Refletindo sobre o que seria de sua vida caso não tivesse uma carreira, Josh pegou o telefone e finalmente retornou a ligação do agente.
- Josh! - A voz de Kyle brotou jovial e cheia de energia do celular. Havia barulho de festa, risada e música natalina ao fundo. - Comecei a achar que você estava enterrado debaixo da neve. Como vão os desertos nevados de Vermont?
Josh encarou o horizonte de Manhattan, as bordas pontiagudas da cidade caladas pela neve que caía.
- Vermont está linda.
Era verdade. Presumindo que nada mudou desde sua última visita, no ano anterior.
- A revista Time acabou de nomeá-lo o escritor de romances policiais mais interessante da década. Você leu o artigo?
Josh voltou o olhar a uma pilha de correspondência não aberta.
- Ainda não consegui dar uma olhada.
- É por isso que você é o melhor no que faz. Não se distrai. Com você, o livro é o que importa e nada mais. Seus fãs estão entusiasmados com esse, Josh.
O livro.
Josh foi tomado pelo medo.
Pensamentos sombrios foram eclipsados por um pânico corporal.
Ele não tinha escrito uma palavra sequer. Estava com um bloqueio criativo, mas não tinha confessado isso a seu agente ou editor. Josh ainda esperava por um milagre, alguma fagulha de inspiração que lhe permitisse escapar dos tentáculos venenosos do Natal para perder-se no mundo da ficção.Era irônico que as mentes perversas e doentias de seus complexos personagens fossem uma alternativa preferível à realidade sombria de sua própria vida.
Josh pousou os olhos na faca sobre a mesa próxima a ele. A lâmina brilhava como se zombasse dele.
Ele passara boa parte da semana olhando para ela, mesmo sabendo que a resposta não estava ali. Que ele era melhor do que isso.- É por isso que você tem me ligado? Para perguntar sobre o livro?
- Sei que você detesta ser incomodado enquanto escreve, mas o pessoal anda no meu pé. As vendas de seu último livro superaram nossas projeções - disse Kyle em tom contente. - Seu editor vai triplicar a tiragem do próximo. Você não quer dar alguma pista sobre a trama?
- Não posso. - Se ele soubesse sobre o que o livro tratava, estaria escrevendo.
Ao invés disso, sua mente estava assustadoramente vazia. Josh não tinha um crime. Pior ainda, não tinha um assassino.
Para ele, um livro começava com um personagem. Josh era conhecido pelas reviravoltas imprevisíveis na história, por proporcionar choques que até o leitor mais perspicaz não seria capaz de antecipar.
No momento, o choque seria a página em branco.
Estava sendo pior nesse ano do que no anterior. Naquela ocasião, o processo havia sido longo e doloroso, mas Josh foi capaz de arrancar as palavras de dentro de si até novembro, antes que as lembranças o paralisassem. Era como tentar chegar ao topo do Everest antes do vendaval. O timing era tudo. Josh não deu conta nesse ano e começava a pensar que era tarde demais.
Precisaria de uma extensão do prazo de entrega, algo que nunca teve que pedir. O que já era ruim. Mas pior ainda eram as perguntas que viriam em seguida. Os olhares de empatia e os meneios compreensivos.
- Adoraria ver as primeiras páginas. O primeiro capítulo, quem sabe?
- Eu te aviso - disse Josh, antes de proferir os votos de boas festas que eram esperados dele e terminar a ligação.
Josh esfregou a nuca com a mão. Ele não tinha o primeiro capítulo. Não tinha a primeira linha. Até agora, a única coisa assassinada era sua inspiração. Ela estava inerte, esvaziada de vida. Poderia ser ressuscitada? Josh não estava certo disso.
Ele ficava sentado horas e horas diante do computador sem que uma palavra sequer brotasse. A única coisa que passava por sua cabeça era Heyoon. Ela tomava sua mente, seus pensamentos e seu coração. Tomava seu coração ferido e destruído.
Três anos antes, ele recebeu a ligação que tirou do eixo sua vida supostamente encantada. Foi como uma cena de seus livros, só que real, não ficção. Ele identificou o corpo no necrotério, não um de seus personagens. Não precisava fingir ser outra pessoa para imaginar o que sentia, pois sentia por si só.
Desde então Josh enfrentou dia após dia, arrastou-se minuto a minuto, enquanto por fora fazia o necessário para convencer os outros de que tudo estava bem. Ele tinha aprendido cedo que as pessoas precisavam disso. Que não queriam testemunhar seu luto. Elas queriam acreditar que Josh estava bem e "seguindo em frente".
De forma geral, ele dava conta de atender às expectativas, exceto nessa época do ano, perto do aniversário da morte.
Em algum momento ele teria que confessar a seu agente e a seu editor que não tinha escrito uma linha sequer do livro que seus fãs tão ansiosamente aguardavam. O livro não daria uma fortuna a seu editor. O livro não existia.
Josh não tinha ideia de como fazer a mágica que o levara ao topo da lista dos mais vendidos em mais de cinquenta países.
Não era capaz de nada além do que vinha fazendo no último mês: sentar-se diante da tela em branco e esperar que alguma ideia brotasse das profundezas de seu cérebro torturado.
Josh estava à espera de um milagre.
Era a época do ano certa para isso, não era?
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Milagre Na 5° Avenida - Beauany
FanfictionAny Gabrielly ama tudo que envolve o Natal. Romântica incurável, ela passará as festas sozinha esse ano, mas nada destrói sua fé inabalável no amor e nas coisas boas da vida. Quando ela tem a oportunidade de decorar a casa de um escritor rico e famo...