A chuva batia fortemente em todas as superfícies do edifício, e com ela a trovoada soava o mais alto possível.
E eu não conseguia dormir.
Não pelo barulho lá fora que não me permitia relaxar, mas sim pela confusão de sentimentos e pensamentos que borbulhavam cá dentro.O que não nos mata, deixa-nos acordados até as 2 da manhã. Até as 2 da manhã? Sim, é capaz de ser por volta dessa hora.
Levantei-me então, cansada da mesma posição, e após procurar os sapatos que trouxera, reparei num conjunto de toilette, em cima de uma cadeira. Todo ele perfeitamente dobrado e passado, pronto a ser utilizado.
Olhei a volta. Mesmo sabendo que todos se encontram a dormir, demasiado assustados para só quererem que o dia acabe, não me sinto confortável o suficiente para trocar de roupa aqui.
Assim, prefiro procurar uma casa de banho mesmo sabendo que será um pouco impossível encontrar uma no meio de tantos corredores e portas.
O frio não me incomoda. Incomodava se não estivesse já habituada a percorrer alguns metros apenas para trocar de roupa ou fazer as necessidades diárias. Por isso, o meu corpo já se encontra consideravelmente adequado a temperaturas baixas.
Atravessei os corredores, cada som a despertar um pânico ridículo dentro de mim. Será medo de que algum acontecimento inesperado aconteça deixando-me a duvidar de tudo, como aconteceu recentemente? É que a transferência para aqui foi tudo menos usual e quanto mais depressa me convencer de que isto é a minha nova casa, melhor. Mas é tão assustador...
Depois de bater a um variado número de portas, acabei por entrar num balneário. O espaço era dividido em bancos colocados estrategicamente para formar um quadrado, e a zona propriamente dita de banho e necessidades.
Acabei por entrar num dos cubículos de banho, e pousar a roupa num dos bancos.
A água gelada percorria o meu corpo, e a sensação não é desagradável de todo. De facto, não me lembro da última vez que tomei um banho de água quente. É muito triste a situação de pobreza em que todos naquela aldeia se encontram e saber que existe uma forte possibilidade de que não melhorem.
Após arranjar o meu longo cabelo, seco da vida de campo, e vestir o conjunto de fotocópia que todos irão usar amanhã, dirigi-me ao dormitório para deixar as roupas em cima da cama e dei de caras com Christopher. Imóvel, no meio do quarto a observar a minha cama com um ar confuso e parado.
Se me mexer, corro o risco de ele me ouvir. Se não me mexer, corro o risco de fazer figura de idiota quando ele me vir. Mas, por qualquer razão desconhecida, tenho as solas dos sapatos presas ao chão.
Tudo nele. O seu aspecto, a personalidade baseada nas poucas palavras que trocamos, a sua presença. A maneira como ele observa tudo como se tivessem uma visão diferente de todos nós, como se olhasse para a vida de outra maneira. Tudo isso me intriga.
De súbito o seu olhar cruzou com o meu, cruzou de uma maneira hipnotizante, como se ele tivesse tanto a dizer e nada pudesse ser dito. Caminhou na minha direcção e algo se prendeu no fundo da minha garganta. Não tenho a certeza do quê, nem porquê mas não gosto da sensação. Sinto-me como se, estranhamente, tivesse perdido o controlo do meu corpo.
- Não devias estar a dormir? - Quero responder-lhe mas limito-me a engolir em seco. Não quero falar de mais. Não quero falar tanto ao ponto de cortar as frases dele por estar assim... Nervosa. Não quero ser apenas mais uma miudinha no meio de tantas outras que ele poderia ter. Não quero.
- E tu? Não devias estar no teu quarto? - Foi mais forte que eu. Não lhe responder iria ser uma falta de educação, claro, e responder com aquilo que queria iria ser atrevimento.
- Anda comigo.
E eu fui. Caminhamos pelo corredor sem nenhuma palavra. Apenas lado a lado, a presença de ambos a ser sentida. Eu gosto destes silêncios, quero acreditar que ele também.
- Sabes onde vamos? - a resposta era demasiado óbvia. Eu não co
nhecia os cantos a casa, por isso posso considerar isto uma tentativa de quebrar o silêncio.
- Não, não sei mas suspeito que me vais dizer não é verdade?- E suspeitas bem. - viramos à direita, entrando num enorme pavilhão. Pavilhão este que estava ocupado por enormes colchões de treino assim como arcos estrategicamente posicionados no teto. Existia também uma secção de corrida, e outra com máquinas. Parecia um mini laboratório misturado com um ginásio.
A realidade atingiu-me como uma flecha.- Isto é...
- A vossa zona de treino. - ele respondeu-me,pausadamente, dirigindo-se para a minha frente. - Não queria que fosses apanhada de surpresa mais logo quando vos for chamar.
Acenei. Não confio na minha voz neste momento.- Vão treinar-nos para...? - e sem qualquer resposta, Christopher sorriu. Sorri de volta.
E sem qualquer aviso prévio, duas grandes asas ergueram-se nas suas costas. Asas brilhantes e que alteraram a cor dos seus olhos também. Um vermelho sangue, quase tão vivo como aquele que nos deve correr nas veias.- Impressionante.
- Faço por isso... Tu também vais conseguir, só tens de desenvolver algumas funcões do teu cérebro que foram desativadas.
- Desativadas? Tenho quase a certeza que se tivessem mexido no meu cérebro eu lembrava-me, obrigada.
- E eu tenho quase a certeza... Que estou certo naquilo que digo. Mas podes esperar até amanhã por uma explicação mais formal, ou ouvir com calma aquilo que te digo.
Cruzei os braços. Quem é que ele pensa que é para me responder desta maneira? Oh espera...
Ele sabe muito bem quem é, e sabe que eu estou assustada, que preciso destas informações e que para estar acordada a esta hora é porque os meus pensamentos encontram-se num estado grave ... Ele é esperto. E quando se preparava para virar costas e ir embora, pedi-lhe que esperasse. Ele acenou em direcção a uns colchões e sentamo-nos os dois. O pavilhão está vazio e eu consigo ver o reflexo das luzes dos dispositivos nos seus olhos, assim como o reflexo de um ser ainda por descobrir.
- Hoje de manhã, vão acordar-vos cedo. Muito cedo. Depois vão mandar-vos vestir a roupa que já tens no corpo, e avisar-vos que tem de deixar tudo o que fazia parte da vossa vida antiga. Não lhes podes ouvir, nunca te deves esquecer de quem foste em prol de te tornares quem eles querem que sejas.
- Não sei se estou a perceber...
- Eles querem criar máquinas. Vão criar máquinas, vão impor-vos regras. Vão dizer tudo o que querem ouvir. Já passei por isso.- o seu olhar desceu para as mãos que se encontravam no seu colo. Vejo uma mágoa tão grande, um medo tão grande de algo que não sei identificar. Vejo isso tudo por baixo desta armadura que o protege. Será normal eu perceber tão bem alguém sem o conhecer?
- E no entanto estás aqui a explicar-me isso... Porquê? Porquê te estás a dar a este trabalho? Porquê é que foi diferente contigo? - Silêncio. Mas desta vez uma pausa de palavras diferente. Uma pausa de palavras desconfortável...
- Eu... Eu não...
- Esquece- levei a mão a face. - Que absurdo...
- Não devias fazer tantas perguntas. - ele levantou-se e eu fiquei a observar o seu corpo num nível superior ao meu. Como é que ele é tão confuso? Num momento tenta ajudar-me e no seguinte retoma a sua postura fria. Ele não sabe o que quer e eu estou a ser apanhada no meio da sua confusão de certeza. É a única explicação a que chego.
E sem mais uma única palavra, o seu corpo afastou-se caminhando e suprimindo as asas a medida que desaparecia do meu campo de visão.
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Bring me to life- Slow Updates
Random"Tu podes ser tudo. Se visualizas uma coisa, eventualmente, acabas por a transportar para a tua vida. Alguns dizem que quem escolhe o nosso destino somos nós. Que todas as escolhas e consequências, recaem sobre nada mais nada menos, do que a nossa p...