9 - É melhor esperar as águas rolarem

62 3 0
                                    

Uma hora depois estou de frente para Kim numa mesa retangular grande, sob a claraboia arqueada do Centro de Lazer Principal de Costa Universal. O lugar está lotando de gente, como de costume. Mas há uma tensão pairando no ar, não só por minha parte, mas vinda de todas as outras, incluído Kim.
- Como vou fazer minha prova com tudo isso?
Kim leva as mãos à cabeça, entristecida.
- Isso... o quê? - arqueio as sobrancelhas.
- Você não sabe? É sério mesmo que não sabe, quer dizer, você é filha dos Presidentes da U.M. e não sabe?
Dou de ombros, não querendo imaginar o que seja a bomba da vez.
- Claro que não sei, Kim.
Kim arregala os olhos puxados e se debruça na mesa, esticando o pescoço até que a sua boca chegue bem perto da minha orelha. Então, como se tivesse medo de ser ouvida, ela sussurra rapidamente:
- Ontem à noite um grupo de Gangsteres atacou a U.M., e outro invadiu a mansão do Maior.
Ela se afasta olhando de um lado para o outro, atenta ao fato de que ninguém tenha nos ouvido. E eu fico em silêncio com medo de toda verdade implícita em suas palavras. Fico ereta na cadeira, demonstrando o pouco efeito que as palavras causaram.
- E você sabe o motivo que os levou a fazer essa loucura? - pergunto a fim de saber mais.
Kim abre um de seus livros gigantes, folheando incansavelmente, mas sem destino aparente. Ela não ergue o olhar para mim quando diz:
- Meu pai me disse que acha que os Gangsteres estão apavorados com o sumiço de seu líder o...
- Agá-S - eu digo sem pensar.
- Agá-S é o líder? - ela esbugalha os olhos negros em surpresa. - Essa com certeza é uma informação confidencial, Lexie. Você não pode falar isso em voz alta quando estiver em público!
Balanço a cabeça indignada comigo mesma.
- Ninguém nos ouviu. E, não sei se se lembra, mas meus pais são os Presidentes da U.M.
- Isso não justifica o fato de você saber uma informação dessas.
- E como você explica o fato de também saber?
Kim se encolhe quando digo.
- Estão oferecendo um milhão para quem conseguir capturá-lo - ela diz. - Não é difícil concluir.
- Hm. Você desviou o olhar ao falar, então, também não é difícil concluir que esteja mentindo.
Ela bufa indignada consigo mesma. Kim é certa demais para mentir com perfeição.
E certa demais para poder guardar o segredo que eu pretendia contar.
- Meu pai me disse - fala após algum tempo de silêncio. - Foi meio que um aviso, mas eu entendi a deixa.
Balanço a cabeça e sinal afirmativo só para não deixá-la totalmente no vácuo. As pessoas ao redor parecem meio alheias a suas tarefas, mas ao mesmo tempo atentas a qualquer movimento suspeito. Consigo ver pelo canto do olho um cara sozinho numa mesa redonda, ele está estudando, mas vez por outra examina o ambiente e sobe seus óculos para cima no nariz.
- Sabe mais alguma informação sobre as invasões? - eu pergunto tentando parecer distraída.
- Ao que parece, os dois lados sofreram perdas. Tanto Crescentes quanto Gangsteres perderam gente. Mas os estragos na sede da U.M. foram grandes. Já na mansão do maior parece ter havido apenas uma destruição mínima.
- Hm.
Pondero contar a Kim sobre Harry, sobre eu estar com o líder dos Gangsteres na minha casa e não saber o que fazer, mas a ideia me parece ridícula. Ela com certeza ia abrir a boca para o pai, ou então me obrigaria a colocar Harry para fora de casa. Ou pior, contaria pessoalmente aos meus pais sobre em manter um Gangster hospedado em minha casa.
Eu fico calada.
Passamos o resto do dia apenas estudando maneiras de ela passar na última prova de tiros. Ajudo Kim a aperfeiçoar a forma como segura a pistola, instruo-a a afastar um pouco mais as pernas e a concentrar-se mais em manter os braços eretos, sem tremer. Contudo, ela percebe a tensão impregnada em mim, e quando o Salão de Treinamentos no subterrâneo do Centro de Lazer fica completamente vazio, restando apenas nós duas, Kim se afasta de mim.
Olho para ela que tirou os fones de proteção e está arrumando o cabelo meio bagunçado. Kim diz:
- Desembuche.
- Hã? - me faço de desentendida.
- Olhe, Lexie, vamos combinar uma coisa, se há algo em que nós duas não somos boas é mentir. Durante todo o tempo em que passamos juntas, você não falou nada além do necessário e, caramba, não reclamou nem sequer uma vez por seus pais não terem dito nada a você sobre o ataque. E, sério, não adianta fazer essa cara de cachorro doente.
Mordo o lado interno da bochecha e ponho as mãos nos bolsos da calça jeans. Eu sei que não há como escapar de Kim e sei que não posso confiar em ninguém como confio, nela, mas envolvê-la numa situação dessas pode ser perigoso.
- Acho que não devo falar nada pra você - eu digo baixinho.
Kim leva as mãos aos quadris.
- Eu sou sua amiga ou não sou?
- Justamente por isso que é melhor não saber de nada.
- Ai, ai, ai. Em que você se meteu, Lexie Allen?
Coloco minha franja de lado, tirando alguns fios do meu cabelo amarelo do rosto. Tenho que agir o mais rápido possível e inverter a situação, mas no momento não consigo pensar em nada convincente.
- Eu conheci um garoto - improviso. Kim sorri. - Não é nada oficial, mas acho que ele gosta de mim.
O sorriso se enlanguesce para no mesmo instante sumir de vez. Então, Kim se senta no chão com as pernas cruzadas e deixa a pistola de lado. Ela pega minha mão e força-me a imitá-la. Eu sinto como se estivesse vendada no meio de um tiroteio, sem poder seguir em frente e nem voltar atrás.
Ela ergue as sobrancelhas, questionadora. Eu suspiro e deixo minhas mãos caírem entre as pernas cruzadas.
- O garoto é um Gangster. E ele está na minha casa.
Silêncio total. Kim me examina de cima a baixo, como se tentasse digerir as palavras enquanto o silêncio não se esvaece. Com cuidado, ela estica as mãos e segura as minhas entre as suas, a expressão em seu rosto indica preocupação.
- Isso é muito sério e você sabe - ela diz cautelosamente.
- É eu sei, mas o que posso fazer?
- Desde quando se conhecem?
Pondero uma resposta que não vá assustá-la, mas decido por fim contar a verdade. Conto tudo, desde a chegada inesperada de Harry a hoje de manhã. Suspiro profundamente quando termino.
- Então você conhece o líder Gangster há quase dois dias e acredita que ele está apaixonado por você... Não espero que você acredite nisso.
- Eu sei que parece bizarro, mas não acho que ele vá fazer algum mal a mim.
Ela dá de ombros.
- Está bem... E quanto à questão de ele afirmar que o Governo aliena as pessoas? O que acha disso?
Fico em silêncio tentando decidir se minto para Kim, ou minto para mim. O problema é que no momento, eu não tenho o direito de me dar o luxo e mentir. Tenho que ser sincera com ambas as partes.
- Para ser franca, confesso que estou na dúvida. - Kim não fala nada. - Você também não acha estranho nunca ter visto algo mais concreto a respeito dos Gangsteres? Eu particularmente nunca ouvi nenhum relato de alguém a não ser a moça do jornal falar sobre os supostos assassinatos cometidos por eles.
Ela coça a cabeça enquanto pensa.
- Pior que vocês têm razão, porque sempre que há alguma notícia sobre motins, a razão é que Gangsteres estão saqueando ou hospitais ou armazéns de comida... mas sobre roubos a bancos... já isso é muito raro. E o ataque da noite passada foi para resgatarem o líder. Suposto, não sei.
Balanço a cabeça espantando a onda de informações. Só de imaginar que meus pais possam estar envolvidos em algum sistema de preconceito racial, ou governo ditador abusivo faz com que os enoje. E não é por querer. Sempre fui adepta a regras sim, mas isso não quer dizer que não seja contra a ditadura e seus ditadores insanos. Não suporto imaginar que pessoas tão próximas a mim possam ser tão cruéis com outras pessoas que só querem ter a certeza que vão dormir de estômagos cheios.
- O que eu faço, Kim? Falo sobre Harry para os meus pais ou deixo as coisas como estão? Essa dúvida vai acabar me matando!
- É melhor esperar as águas rolarem. E se precaver, só por garantia.

Sem RegrasOnde histórias criam vida. Descubra agora