13 - Um legado

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Abro os olhos devagar e sorrio ao ver o rosto de Harry se formar acima do meu. Sinto suas mãos ao redor das minhas bochechas, ele parece levemente preocupado. Xingo baixinho quando tento levantar e minha cabeça dói.
- O que aconteceu? - eu pergunto ainda meio grogue.
- Parece que você teve uma queda de pressão. Acho que ainda não se acostumou com seu novo lar.
Forço-me a sentar na cama e olho fixamente para Harry. Do que ele está falando? Eu não pretendo ficar aqui. Não antes de decidir em quem acreditar.
- Harry eu... eu não disse que quero ficar aqui.
- Mas vai dizer. Com certeza vai.
Eu balanço a cabeça, imaginando como ele pode estar tão certo quanto a isso se nem eu sei o que farei. Harry não parece o tipo de cara que flerta, pelo contrário, ele exala autoconfiança e outros sentimentos de poder. Mas eu não estou disposta a ceder a sua carranca sem alguma prova de sua parte. E até agora, tudo o que eu sei é que os Gangsteres são espiões muito bem informados sobre os acontecimentos de Costa Universal, talvez até mais que a U.M., e não sei mais nada senão palavras sobre a corrupção do Governo.
- Não estou tão certa quanto a isso - eu falo desviando o olhar. - Tudo o que me mostrou... Harry, vocês vigiam a cidade, vigiam as casas... - eu paro de dizer o que estava dizendo, um pensamento assustador passando por minha cabeça. - Você me vigiava, não é?
Harry contrai os lábios e senta-se na cama a meu lado. Ainda não tinha notado que estava, possivelmente, deitada em sua cama no seu quarto. Sinto algo parecido a um formigamento percorrer pelo meu corpo.
- Sim - diz sem rodeios. - Eu sempre a vigiava, porque você sempre me, eu não acredito que vou dizer isso, mas você sempre foi alguém especial. Quando a vi pela primeira vez, você estava no Vale, no Centro de Lazer com o seu cão. Eu fiz questão de sair e segui-la para saber onde ficava sua casa. Depois instalei câmeras ao redor, para poder vê-la todos os dias. E naquele dia em que me feri, eu não sabia para onde ir, por isso fui parar lá - ele faz uma pausa e olha para mim. - Mas juro que não sabia de quem você era filha.
Fico em silêncio ao mesmo tempo em que tento digerir suas palavras. Como eu podia estar com ele? Como podia estar no mesmo quarto que um Gangster psicótico que seguia cada passo meu? Diante desses e outros milhares questionamentos que fiz a mim mesma, eu conclui que, mesmo que quisesse fugir de Harry, estaria negando a mim, uma parte negra de minha vida. Eu não queria negá-la.
Ajeito-me na cama, sentando-me ao lado de Harry e pondo uma de suas mãos entre as minhas. Eu a acaricio e brinco com os dedos dele.
- Não sei se tenho medo ou se acho isso lindo - digo.
Harry se ajeita de modo que fiquemos um de frente para o outro, depois passa a mão por sob minha franja e segura minha cabeça pela têmpora. Eu fecho os olhos, sentindo sua palma quente e deixando que sua quentura me invada, aquecendo todo o meu corpo. Quando ele se aproxima para um beijo, eu o permito a pressionar os lábios contra os meus. Mas o afasto em seguida.
- Que foi?
- Quem é ela? Michelle, quero dizer.
Os cantos da boca de Harry se erguem num sorriso debochado, as covinhas surgindo. Seus olhos verdes brilhando são tão lindos que eu poderia viver à base de sua beleza.
- Está com ciúmes, amorzinho?
Dou de ombros.
- É minha irmã - diz mordendo minha orelha. - A única família que tenho aqui comigo, além dos meus amigos, claro.
De repente sinto-me uma boba por não ter percebido sua semelhança física a de Michelle. Os longos cabelos cacheados castanhos dela, dizem, por si só, o parentesco com Harry.
- O que aconteceu com seus pais? - no instante em que pergunto, Harry desvia o olhar.
- Foram assassinados por Militantes.
- Sinto muito.
- Sinta-se honrada por ser a única pessoa com quem falo sobre eles... - ele faz uma pausa, depois continua: - Minha mãe era linda, Lexie. Eu a vejo em Michelle. E eu possuo a determinação de meu pai...
Ele suspira, cansado. Depois volta seu olhar para mim e sorri. O sorriso se desfaz de repente.
- Quando morreram, eles deixaram um legado. "Não os deixe vencer", meu pai disse a mim antes de se afastar. No começo não entendi nada do que ele quis dizer com aquilo, depois descobri quem os matou. Seu fim foi o início dos Gangsteres.
- Me diga que não foram meus pais os responsáveis...
De novo ele desvia o olhar. Levo minhas mãos em forma de concha à boca, horrorizada.
- Nós erámos Decrescentes... estávamos a ponto de saquear um armazém de comida... papai e mamãe esconderam Michelle e eu nos becos a frente do armazém antes de entrarem. Eu vi um carro preto chegar, no começo pensei que fosse o dono do lugar e quando percebi que não era, foi tarde demais. Tentei correr. Voltei do meio do caminho para acalmar Michelle que chorava do outro lado da rua. Seu pai e sua mãe desceram do carro. Eles jogaram granadas dentro do armazém. Fui para as sombras com Michelle. Alguns dias depois vi os rostos que eu jamais esqueceria num anúncio na TV.
Meus olhos ardem, mas não choro. Não tenho o direito de derramar lágrimas por pessoas que meus próprios pais assassinaram. Não sou digna disso. E ao invés de falar algo, eu abraço Harry, que se mantém firme e não expressa qualquer tipo de emoção. Seu rosto é um infinito escuro, vazio.
- Depois disso, eu e alguns amigos resolvemos criar um grupo que vingasse a morte de nossos pais e acabasse com a injustiça imposta pelo Governo. Afinal, não é porque estamos dentro da Fronteira que vamos ser fantoches deles. E então, os Gangsteres surgiram. - Ele segura minhas mãos, depois beija a parte externa até as pontas dos dedos. - No começo erámos apenas uns seis jovens. Liam, Niall, Louis, Zayn, Michelle e eu. Depois mais Decrescentes se juntaram a nós, muitos adultos. Mas todos sempre mantiveram a ideia de que eu fosse o líder, por motivos óbvios, afinal, eu quem fui o responsável pela organização - Harry dá um sorriso. - E assim vivemos desde então. Nós não matamos, Lexie, apenas roubamos para a própria sobrevivência e não seguimos as regras do Governo, por isso o Maior nos odeia tanto.
- E como você explica as rebeliões ultimamente? - ergo as sobrancelhas.
- Zayn é um filho da puta e estava no comando, lembra? Ele é uma espécie de dependente do poder. Tenho certeza que se alguém o convidasse para servir ao Governo, ele iria sem nem pensar.
Dou de ombros, imaginando que tenho que me manter afastada de Zayn.
- Eu quero ir pra minha casa - digo. - Preciso... pensar de novo sobre isso.
Harry ri e beija levemente meus lábios. Ele se afasta, mas mantém a mão em meu rosto.
- Antes preciso falar algo.
Balanço a cabeça em sentido positivo.
- Pode falar.
- O Governo está escondendo algo muito sério de todos, Lexie. Ainda não tenho informações sobre o que é, mas precisamos descobrir isso antes que seja tarde demais. A Catástrofe destruiu grande parte da Terra, amorzinho. Somos protegidos apenas pelas Fronteiras, mas se elas cederem, seremos todos devorados pelos Duos.
Duos. A menção a eles me faz estremecer de pavor. Nunca vi nenhum em minha frente e tenho quase certeza que mais de 50% da população de Costa Universal também não. Eles são humanos com o DNA fundido aos de animais, frutos de uma experiência mal sucedida que quase levou à extinção a raça humana.
- Você acha que estão planejando destruir os muros... seria suicídio derrubar as Fronteiras, Harry.
- Quando se trata do Governo, tudo é possível.

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