a matéria sem mente

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     Se tem alguém aqui não deve ser tão secreto assim... Mas serei eu, alguém?

     O que parecia ser meu corpo jazia no chão, coberto de terra e musgo. Me aproximei ao rosto estranho, com mais olhos do que eu estaria normalmente acostumada, mas não incomodava nem mesmo a pequena flor nascendo do maior olho morto da testa.

     Não sentia necessidade de fumar, mas parecia mais coerente fumar um cigarro depois de morrer. Talvez até mesmo um charuto, mas algo me diz que charutos combinam mais com o ato de nascer...?


     Um terremoto, o céu literalmente caiu. Em cima de mim? Foi assim que vim parar aqui? É uma versão melhorada de todas escolas, museus e bibliotecas que já lembro ter visto. Lembro, mas onde estão as memórias? Não consigo revivê-las, mas de algum modo, estão aqui.
Não lembro quem sou, o que fui ou o que deveria ser. Também não sei se devo me importar, afinal de contas, já estou morta. Algum tipo de morte mais radical deve existir, ou pelo menos é o que me parece no momento. Meu espírito continua aqui, então a morte daquele corpo não deve significar muita coisa. Não me reconheço, não reconheço a vida e muito menos a morte.

     Os corredores mal iluminados se estendem até fins totalmente escuros, não sinto medo, acho que na verdade, não sinto nada. A ideia do cigarro foi abrupta, nem ao menos sei dizer se sou, era ou já fui fumante. Não que isso importe, acho que nada importa.
Isso seria o céu ou o inferno? Não me parece nenhum dos dois. Seria o espaço entre os dois, ou um lugar totalmente diferente dessas duas concepções? Não lembro do que eu costumava acreditar, e agora apenas espero que nenhum dos dois seja tedioso. Morrer tudo bem, mas morrer e ir parar num pós-vida sem graça já é um pouco demais.

     Ando alguns passos até encontrar a primeira porta, de madeira escura envernizada e parecendo muito pesada. O interior se parece com um escritório, tem algumas prateleiras com livros, uma mesa e algumas cadeiras e poltronas.
     Instintivamente abro algumas gavetas, procurando sei lá o que. Acho cigarros e um insqueiro, talvez eu tenha sido guiada a isso. Por quem ou pelo quê não ouso tentar decifrar. Acendo o cigarro sentada na poltrona maior, fingindo que é o meu escritório da morte.

     A morte me parece ser apenas uma parte diferente da vida. Morrer num corpo claramente não significa deixar de existir, já que ainda estou aqui. Morrer por dentro e continuar habitando um corpo deve ser um tipo diferente e mais profundo de morte. Por algum motivo, tenho certeza de que isso é possível.

     Encaro as paredes borgonha desbotadas por algum tempo, sentindo e pensando coisas que não consigo entender. O que é esse eu, afinal? O que foi aquele eu do corpo desfalecido? O que será desse eu agora? Será que eu serei outro eu em outro corpo, ou até mesmo sem um corpo, em algum outro lugar?
     Talvez se eu realmente quisesse respostas elas viriam até mim, mas não sinto necessidade de respostas, as perguntas não são tão importantes.   Gosto de estar só nesse lugar sombrio, gosto do silêncio e da sensação de que não existe nada mais além deste eu e esse lugar onde me encontro. Não há pressa nem raiva, nem mesmo confusão. Sinto profunda paz por estar morta, e não me importo se isso diz algo sobre minha antiga vida ou não. Estou aqui agora, num lugar estranho e sem um corpo, fumando um cigarro, e apenas isso importa. Ou talvez nem isso importe.

     Não há oxigênio no ar e meus olhos não captam luz. O coração não bate, não há sangue para bombear, provavelmente, nem mesmo um coração de enfeite. Não há pele para arrepiar, não existe chão para pisar, nem caminho algum a seguir. Entre o tudo e o nada, ou é a combinação dos dois. Qual é a diferença entre tudo e nada? Muitas vezes, apenas o ponto de vista. Perspectivas mudam o mundo, não importa qual mundo seja.
     Olho para baixo e não encontro corpo, apenas uma forma translúcida com uma silhueta estranha. Se não tenho mãos, quais dedos seguram este cigarro agora? Se não tenho boca -- assumo que não tenho um rosto --, como estou tragando?
     O cigarro cai na mesa de mogno, toda a fumaça que eu pensei ter ingerido espiralou toda à minha frente. Sinto-me tremer internamente, mesmo sabendo que não há nada interno. Sinto-me totalmente desorientada por alguns instantes. Como há apenas momentos atrás eu estava fumando tranquilamente, e agora parece que nunca ao menos existiu a possibilidade?

     Olho ao redor mais uma vez, as cortinas cinza parecendo empoeiradas não me revelavam nem mesmo a existência de vento, os vidros das janelas não mostravam lugar nenhum, mesmo os quadros não pareciam expressar nada.
Então, logo acima da porta pela qual entrei encontrei os dizeres "A mente domina a matéria", formando-se em luz prateada. Tive a sensação de conhecer esta frase, mas tão rápido quanto surgiu, ela desapareceu. Se eu acreditar que tenho algo como um corpo, poderei fumar novamente? Não sei por que, mas essa é a única coisa com a qual me importo no momento.

     Tento pegar o cigarro, mas não consguir ver ou sentir mãos torna impossível a tarefa. Tento visualizar mãos como as de meu antigo corpo, e ainda assim, nada acontece. Como a mente pode dominar a matéria se a matéria não existe? Seria eu capaz de criar uma ilusão palpável?   Novamente me proponho a visualizar, mas dessa vez, não como uma cópia de algo visto, e sim como uma silhueta translúcida, com alguma luz.
     Tomo alguns segundos antes de estender a visualização para o cigarro, e assim que acredito que consigo, logo ele está novamente em minhas mãos.

votos secretos da identidade do ventoOnde histórias criam vida. Descubra agora