atemporal névoa mental

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      — Então, qual é sua praia? — indagou o espectro dentro de sua cabeça.

      — Isolamento. — respondeu sem pensar ao menos uma vez. Geralmente nessas conversas, as respostas eram quase automáticas. Pensou em mais coisas que faziam parte de seus interesses estúpidos, mas preferiu calar-se e deixar parando no ar apenas o peso de sua única palavra.

      — Isso é mentira.

      — Não inteiramente. — Era metade mentira, pensou. Gostava de ser social de tempos em tempos. Precisava disso ou então acabaria perdendo parte de suas faculdades mentais. Admitiu isso apenas para si, mas o espectro sempre parecia saber mais do que lhe era comunicado intencionalmente.

      — A fumaça que lhe escapa os lábios é apenas uma desculpa. — retrucou.

      Ora, era novamente uma meia verdade. Mas a fumaça era sua amiga, e lheescapava assim como todos amigosque já tivera.

      — Eu sei. — a resposta foi seca, desprovida de emoções.

      — Tampouco estas doses de uísque lhe satisfarão.

      — Disso eu também sei.

      — E o que fará agora?

      Parou por um momento, percebendo quão tarde era e relembrando seu sono interrompido. Sem sonhos desta vez. Acreditava precisar de mais tempo para sonhar. A madrugada passada fora semelhante; embora tenha sonhado, não fora capaz de recordar.

      Então se viu um gato preto e ronrronante — se é que tal palavra existe —  pela janela na qual se aconchegara. Durou apenas um minuto, e ele se foi. A pergunta que pairava na atmosfera lhe voltou à consciência.

      — Eu não sei. Eu nunca sei.

      — E esta é mais uma mentira.

      Era. Era e não era. O saber ultimamente estava confuso, então se um dia já soube o que fazer, provavelmente não o fez.

      — Quem é você, afinal? — perguntou sem proferir palavra alguma, sabendo que não obteria resposta. A cabeça pesou, vibrou, mas mais nada dali saíra.

      Eu poderia ser o tipo de pessoa sobre as quais são escritas músicas, até filmes. Ao invés disso, eu sou do tipo que pensa e escreve todas essas coisas, sem muita possibilidade de finalizar e compartilhar. Afinal, quem entenderia minhas histórias?

      Eu sou um poço fundo de dor e esperança. Não sei em que parte disso me encontro agora, talvez no meio. A dor me aflinge, mas a esperança quase sempre está presente, mesmo contra minha vontade.

      Ninguém além de mim talvez seja capaz de escrever sobre mim, mesmo que alguém me veja, sua visão jamais — digo jamais com uma ponta de esperança — seria capaz de captar o que sou de verdade. Talvez nem eu tenha tal poder. Me encontro e logo em seguida me perco, é sempre assim.

      Invejo as musas que não têm que escrever a própria história, ou descrever os percalços de sua própria existência, mas não acredito em minha capacidade de ser assim. Pelo menos não por completo.

      Eu sou minha própria musa. Em paixão, amor e desespero. Eu sou minha luz e minha cruz. Existir como eu é uma batalha que travo contra mim e todos outros seres existentes.
    
     

votos secretos da identidade do ventoOnde histórias criam vida. Descubra agora