o gelo que me atormenta nas sombras

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     Frio, suor, tremedeira, articulações doloridas e a sensação de estar respirando pó. Não há certificado na morte, ninguém avisa que não estou mais vivo. O silêncio é, na verdade, a melodia do vento. Não quero parar de escutar.
     É escuro e sombrio, como uma cova, mas se parece mais com uma caverna. Dois sóis em um céu negro. Duas ruas paralelas sem saída. As cicatrizes que me marcaram em vida parecem arder na morte, mas a ardência não é de todo dolorida, ela me lembra que vivi; E viver, apesar de tudo, foi bom.

     Não busco renascimento ou absolvição, não busco coisa alguma. Que me dilacerem a alma se assim for necessário, que me queime o espírito até que não reste nem mesmo a ideia dele, que me arranquem os olhos com presas de serpente. Toda plantação em vida gera uma colheita, mesmo que chegue na vida após ela.
     O que plantei já não me importa mais, pois nada posso mudar. O que colherei não me incomoda, não me preocupa, não me faz tremer. Aliás, a tremedeira parou, assim que eu lembrei como melhor respirar.

     As paredes são pintadas de sangue, já tão antigo que a cor mais se parece com barro. O cheiro, entretanto, não deixa enganar: algo ou alguém morreu aqui. Morte bruta, dolorosa, dilaceradora. Havia sido eu? Havia sido outra pessoa? O sangue poderia ser de algo ao invés de alguém? São perguntas que não necessito responder, não me importo com respostas.
     Nada importa além de minha caverna-cova, nada importa além dos dois sóis que agora se tornam vermelhos. Não vermelho sangue, nem mesmo vermelho-sangue-velho, vermelho neon, como se tentasse machucar-me os olhos.
     Mas a dor não vem, assim como não vem o rancor. Talvez esteja agora desprovido de qualquer sentimento, ou talvez apenas cansado de sentir.
Como posso estar cansado se acabei de morrer? Eu acabei de morrer, sim? Acho que eu lembraria se estivesse aqui há muito tempo. A não ser... A não ser que a amnésia seja meu castigo, e a tremedeira fosse ansiedade por não saber como pagarei no futuro.

     A única coisa da qual sei é que o que vai volta, o que é plantado é colhido, e o que é feito não pode ser desfeito, nem antes nem depois da morte.

votos secretos da identidade do ventoOnde histórias criam vida. Descubra agora