Capítulo 1

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Sob um mar gelado e tranquilo, cujos ossos descarnados há muito já cobriam a areia do fundo completamente, está submersa uma mulher em posição fetal. Metade de seu corpo é vivo e cinzento como o de um recém-nascido, a outra metade é escura, enrugada e morta. Seu nome é Hela. É crua, não tem cabelos e nenhuma roupa lhe cobre o corpo. Seus olhos: um verde como musgo e o outro, completamente negro, se abriram, puros e profundos.

Nadou até a superfície, cravando os dedos dos pés nos ossos escorregadios para se apoiar e se erguer rumo à praia. Precisou arquear seu corpo inteiramente para frente, buscando equilíbrio em seus braços oscilantes para evitar cair na água. Sentiu seus pés afundarem nas cinzas da praia e grudarem em sua superfície úmida.

Um deserto surgiu diante dela, tocado pelas cores de um eterno crepúsculo alaranjado e nublado. À sua direita havia uma torre de pedra em ruínas, escurecida por chamas há muito apagadas. Uma cadeia montanhosa à oeste guardava um vulcão adormecido, congelado por dentro. Niflheim era o vasto e misterioso reino sob a terra mortal, esquecido pelos Aesir, hoje uma terra fria e cheia de ruínas.

Hela iniciou uma longa caminhada. Almas moribundas de toda sorte perambulavam pelo deserto. Diferente dos vivos dos mundos da Grande Árvore, elas não temiam vê-la por inteiro, não evitavam olhar para sua carne apodrecida e enxergavam a crueza de sua metade viva. A morte os transformara em seres humildes, e Hela apreciava uma boa conversa com eles.

Os espíritos perdidos vagavam pelo deserto de cinzas e ali, entre eles, Hela parecia só mais uma alma. Não era representada em artefatos, como martelos poderosos, uma espada de ouro ou alguma glória mística como os Aesir dos salões dourados que visitou outrora. Não era representada por quase nada, exceto pelo verme, um verme qualquer, simplório, escondido sob a carcaça decadente, mas que, por ser verme, era também comum a todos os corpos. Afinal, todos os vivos deveriam encontrá-la. Não era uma rainha coroada como os deuses dos reinos de glória. Ainda assim Niflheim era seu lar e sua responsabilidade, e aprendeu a amá-lo com o tempo.

Hela parou diante de um homem robusto e ensanguentado. Estava preso nos pulsos por correntes de gelo, seu corpo estava coberto com sangue seco, terra e suor, e seu cabelo e barba estavam desgrenhados. Ele encarou Hela fervorosamente, em um misto de dúvida e raiva.

– Você é Hela, senhora dos miseráveis. – sua voz tremia. – Por que estou aqui?

– Também me pergunto isso. – disse secamente. – Você tem alguma noção?

– Eu derramei sangue, eu não deveria estar neste deserto. Deveria estar com o Pai de Todos!

– Vamos ver. 

Hela se aproximou, com suas mãos erguidas contorcendo-se. O homem tentou se esquivar, mas logo se paralisou. Sob seu domínio, ele se curvou e ajoelhou, segundo as ordens gesticuladas pelos seus dedos, para que ela tocasse sua testa.

Avistou uma vida de guerra, crueldade gratuita contra aldeões e contra seu próprio povo. Mas isso ainda não era motivo o suficiente para não ascender a Valhalla. Viu ele morrer no acampamento de guerra, encolhido e grunhindo por uma infecção agravada por veneno. Uma morte covarde para os guerreiros.

A deusa da morte observou os grilhões de gelo nos pulsos do homem. Ele havia escapado de Nastrond, onde as piores almas são enviadas para alimentar a grande serpente Nidhogg, o dragão que rói a base da Grande Árvore, Yggdrasil. Em um estalar dos dedos de Hela a alma é incinerada e, aos gritos de ódio e temor, foi logo transportada de volta para Nastrond.

Hela continuara sua caminhada em meio aos andarilhos etéreos. As almas dos perdidos lhe contavam suas histórias de vida: as batalhas que tiveram de enfrentar, as perdas que sofreram em ataques surpresa por saqueadores do mar, suas vilas, suas famílias, companheiros de batalha, carregamentos de escravos, seus grilhões e escravizadores, e perda das próprias vidas, seja para a guerra, para o gelo, o fogo, doenças ou ainda a fome, e raramente para a velhice. Mas a alma que mais lhe chamara a atenção foi a de um garoto afogado.

A criança parecia sentir mais dor que um guerreiro sádico em Nastrond. Pelo aspecto de seu rosto contorcido, apesar de não ter feito nada para merecer isso. Seus cabelos negros ainda flutuavam como se estivesse submerso no mar e seus olhos estavam um pouco inchados. Ele encarava Hela com curiosidade.

As almas a seguiram e ela felizmente os conduziu pelo deserto. Os espíritos eram curiosos sobre a natureza dela.

– Quem é você? – perguntavam alguns. – Como chegou a governar Niflheim? 

– Sou filha de Angrboda e de Loki. – contou-lhes com tranquilidade. – A mais nova entre meus irmãos, Fenrir, o lobo, e Jormungandr, a serpente do mundo.  Nascemos na escuridão de uma caverna profunda, mas ecoamos para muito além dela. Assim, fomos descobertos pelo Pai de Todos, Odin, que mandou seus filhos atrás de nós.

– Você conheceu Odin? – perguntou a criança, que andava de mãos dadas com sua metade morta, como se a conhecesse há muito tempo. – Como ele é?

– Caolho, desconfiado, astuto, e adora usar uma armadura iluminada. Na verdade, tudo em seu reino é iluminado. Quando chegamos lá, os Aesir não paravam de falar sobre si, sobre o que desejavam. Pareciam ser feitos mais de palavras e interesses que de ação e matéria. E apesar de julgarem meu pai, que vive entre eles, de ser egoísta, não vi muita diferença entre todos eles.

Ainda se lembrava dos salões dourados dos Aesir, de como os deuses pareciam gloriosos e iluminados. Cada um deles sentiu apreensão ao me ver, embora alguns disfarçassem com peitos estufados e olhares desafiadores. Em contrapartida eu não os temi, nem mesmo a Odin.

"A você, Hela. Vejo seu domínio sobre os seres de todos os mundos."  – dissera Odin, sua voz carregada de sabedoria. – "Dou-lhe morada em Niflheim. Lá deverá cumprir seu dever sobre os mortos e jamais deve deixar seu reino."

Os espíritos humildes a seguiram em procissão através das dunas de cinzas, até estas serem substituídas pelos pilares hexagonais vulcânicos que compunham um chão duro. Alguns em especial estavam erguidos, separados uns dos outros, como colunas, e formavam um santuário circular. Hela caminhou até seu centro, onde desenhou runas no chão de pedra e cinzas com os dedos. Um espelho de névoa negra se formou entre dois dos pilares e assim ela os guiou até o outro lado.

Ao primeiro passo sentiu o pedregulho escuro e gelado sob seus pés nus. 

O céu de Niflheim estava sempre nublado, e os ventos cortantes percorriam a estrada que levaria a seu palácio, Helvidner. Seu lar, onde seus criados, a Vagareza e o Atraso, a aguardavam. Os grandes portões de madeira se abriram lentamente, revelando a luz irrestrita e o sopro quente de seus salões. 

A Herdeira de HelOnde histórias criam vida. Descubra agora