Hela admirou a montanha por um instante. Ascendia imperiosamente, com um pico nevado em seu topo. Ela então decidiu subi-la. Era uma escalada íngreme e gelada. Suas mãos nuas afundavam na neve e encontravam a rocha negra e irregular onde podia se apoiar e então se lançar para cima. Sua metade viva arfava e se contraía infinitamente de modo que tinha que parar vez ou outra para recuperar o fôlego, ao passo que a sua metade morta não sentia cansaço algum. Quanto mais escalava, mais se sentia próxima do que os vivos sentiam. Acima, Knud a acompanhava vigilante sobre as próprias asas.
Quando alcançou o cume da montanha, o crepúsculo já pintava o céu de laranja e rosa. Permitiu-se dar um último descanso e, por um instante, viu o horizonte como os vivos o viam: uma imensidão cheia de mistério e beleza. Sentiu sua respiração se acalmar ao passo que uma expectativa distinta a atravessava. Ou seria aquilo satisfação com o destino alcançado? Não era uma sensação de esclarecimento, mas de estranha potência. Hela encontrou algo que apreciava mais do que nunca, depois de tanto tempo em Midgard: viajar; apesar do cansaço, era revigorante sentir seus pés na caminhada e seu corpo na escalada. Mesmo em Niflheim, apreciara as longas caminhadas pelas vastas paisagens, mas sob seu dever sobre os mortos, jamais tinha percebido o valor daquilo.
A brisa, que não deixou de percorrê-la por todo o caminho se fez presente uma vez mais. Era como um sussurro e uma canção, parecia falar uma língua que ela não entendia, enchia seu pulmão de um formigamento expansivo.
Knud pousou ao seu lado e se desfez de sua roupa de ave. Era um garoto uma vez mais. Seus cabelos flutuavam etereamente, mas seu olhar estava mais presente que nunca, e o horizonte dançava em seus olhos cinzentos.
– Está tudo bem? – perguntou Knud, para sua surpresa.
– Como assim?
– Parece diferente, menos andante, mais... pensativa, talvez.
Hela encarou sua mão pálida durante certo tempo.
– Não sei. – disse por fim. – Jamais pensei que podia me sentir assim...
Knud a encarou, indagando-a com os olhos.
– Estranhamente viva.
– É parte de você... – disse ele. – Mais do que eu, menos que os vivos.
– É estranha a sensação... e familiar ao mesmo tempo. Em Niflheim eu jamais teria percebido algo assim.
Knud assentiu e seu olhar se dispersou, distraído.
– Está a pensar em algo, criança?
– Aqui me sinto em casa.
Hela sorriu e o acolheu em um abraço com sua metade morta. Knud recolheu sua mão entre as suas. Observaram os vales entre as montanhas, as nuvens brincando de escorregar em suas decidas, as árvores que conversando a língua das folhas e os ventos, estes que passeavam por eles outra vez. Havia algo naquelas montanhas, algo que ela saberia dizer tanto quanto a misteriosa vida recém-desvelada que sentia.
– Os ventos parecem querer falar algo. – foi tudo o que conseguiu dizer.
– E querem. É a canção dos nossos.
Hela pensara em lhe perguntar de que nós Knud falava, mas a percepção lhe veio aos poucos, ao deixar os ventos cantarem. Lentamente os sussurros ganhavam formas e, quando se deu conta, estavam rodeados pelos espíritos.
O céu sobre as montanhas brilhavam, como se houvesse centenas de fogueiras brancas, verdes e azuis a crepitar, distantes o suficiente para que dançassem com as estrelas. Mas de perto era possível ver seus rostos contemplativos. Hela sentia paz neles e algo muito mais ancestral que o molde de seu próprio corpo.
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A Herdeira de Hel
RomanceHela é a personificação da morte. Seu corpo é metade vivo, metade morto, lado este sempre evitado e temido, seja pelos mortais ou deuses. Niflheim é seu lar, e Hel, reino dado a ela por Odin, é o lar dos mortos, que ela cuida e direciona com mãos j...