Capítulo 2

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Ao abrir os portões de seus salões, Hela ouviu os espíritos que a seguiam suspirarem em surpresa. Ao contrário do que imaginavam, não era um salão inerte e decrépito, mas iluminado, aconchegante e repleto de almas justas.

Ali elas vagavam, comiam e  conheciam-se umas as outras. Vez ou outra deixavam os salões para vaguear pelas florestas geladas que circundavam as montanhas nevadas de seu reino. Hela não impedia suas andanças, gostava de que fossem livres. Os espíritos ainda tinham muito o que descobrir sobre sua natureza após a morte deseus corpos, e a natureza profunda dos espíritos é fugidia e livre como os ventos, ou como uma canção, ao mesmo tempo presente e imaterial.

Balder foi o primeiro a saudá-la e sorrir ao vê-la. Hela se curvou ligeiramente em resposta. Ele conversava com Hoder, seu velho inimigo, mas agora mais se pareciam irmãos ou amigos de longos anos. Balder era uma alma valiosa, cheia de bondade e de luz. Adorava fartura e diversão, mesmo nos momentos mais sombrios de sua vida seu bom humor tinha acalmado seus irmãos com piadas e sorrisos despretensiosos.

Quando Balder deixou o mundo dos Aesir graças a um plano ardil de Loki, que fez Hoder assassiná-lo em uma brincadeira de arremesso de facas, ele levou muito de sua bondade para a escuridão gelada de seu reino. Muitos dos vivos procuram essa bondade perdida em tempos sombrios e acreditam que Balder sua fonte. Pois é quem cuida das almas inocentes em Niflheim, e para Hela eles não poderiam estar mais certos. Ela preparara tudo para que achasse conforto em seu lar, para acolhê-lo, assim como aos espíritos vindouros. Afinal, todos encontravam nele também uma lareira em meio à frieza congelante de seu reino.

Atravessou o salão, saudada pelos espíritos e foi recebida pelos pilares de fumaça negra dos seus aposentos particulares. Seus criados, a Vagareza e o Atraso,  a aguardavam cobertos em seus mantos de luz negra, apenas seus braços lhes escapavam, brancos como cinzas. Eles a receberam sem reverência e a envolveram em suas cobertas. Hela descansou entre as paredes escuras de seus aposentos. Teve um sono cheio de sonhos dos quais não lembrava e, ao acordar, seguiu para fora dos salões uma vez mais, onde os ventos e a neblina a receberam como um manto gelado.

Soosh!

Hela ouviu o barulho do deslizar no gelo, das curvas abruptas na superfície da neve, e então, as gargalhadas.

Sobre seus esquis de madeira, Uller descia velozmente pela imensa montanha atrás de Helvidner. Ao avistar Hela, pareceu fazer questão de impressioná-la, pois começou a rodopiar e saltar em manobras, até que a última o levou até o lado dela, com uma boa porção de neve caindo sobre ela. 

Ele riu e afastou um pouco da neve de seu rosto. Hela o encarou, desconfiada, antes de abraça-lo.

– Bem vindo novamente à Niflheim, amigo!

– Muito obrigado, querida.

O deus invernal Uller havia acabado de chegar de sua estadia em Midgard. Agora a luz se espalharia novamente na terra dos mortais, trazendo consigo as estações do verão. Trajava roupas pesadas e suas botas de neve, com as quais esquiara pelas montanhas de Niflheim até se encontrar com Hela. Ele se curvou diante dela para firmar suas boas vindas e, ao fazê-lo, sua longa trança negra e volumosa deslizou para o lado sobre suas costas. Quando se ergueu novamente Uller a encarou com seus amistosos olhos azuis em sua face alongada.

Ambos iniciaram uma conversa e não demorou para que se sentissem impelidos a sua prática de arco e flecha. Era o esporte favorito de Uller, logo depois da prática de esquiar. Uller portava um arco de madeira de teixo envolvida com camadas gelo, que era o principal material das flechas também. Ele conseguiu forjar para Hela um arco feito inteiramente de gelo e, em posse das armas, começassem sua pequena competição. Atiravam nas árvores, folhas e quaisquer alvos improvisados, e assim, continuavam também a conversar.

Gostava de Uller mais do que gostaria de admitir. O deus do inverno era curiosamente divertido e falava de suas viagens pelos mundos. Hela sempre as ouvia atentamente, pois pouco sentia conhecer dos outros mundos. Para não mencionar que Uller era um ótimo contador de histórias e suas palavras tinham o poder de deixá-la vagar por paisagens onde jamais estivera.

– Nunca lhe perguntei se já fostes à Midgard... – disse ele.

– Odin me deu este reino para cuidar ainda criança, não tive tempo de explorar Midgard. Tenho responsabilidades aqui.

– Ah, Odin! Grande babaquice da parte dele. Você reina sobre a morte e os mortos, mas não vê nem mesmo de onde os espíritos que moram em seus salões e abismos vieram.

– As almas me contam suas histórias, através deles vejo suas vidas.

Hela atirou, sua flecha atravessou uma folha de ferro na floresta metálica.

– Belo tiro. – disse ele atirando logo em seguida, a flecha dele atravessou três folhas. – Mas ainda são as histórias dos outros, não suas.

– Fala como se pudesse mudar algo, você nem pode voltar à Midgard agora.

– Mas poderei um dia, ao final da estação, e a levarei comigo.

– Como pretende fazer isso? – disse ela, cética enquanto esticava a corda com a próxima flecha, que logo silvou pelo ar.

– Está ignorando que sou o melhor encantador dos nove reinos? – Uller lançou-lhe uma piscadela. – Eu posso levá-la pelo mar, você verá. Ali numa praia sob o vale, uma pequena baía é o porto que uso para a travessia entre reinos. Se quiser ir, vá lá ao fim da estação, garantirei os meios.

– Curioso...

A flecha de Uller atravessou uma estalactite de gelo, partindo-a ao meio. Hela acenou e atirou a sua própria, atingindo a estaca de gelo ainda em queda. Ambos riram.


Quando chegou o tempo previsto, Uller a encontrou na praia onde ele sugeriu que ela poderia lhe encontrar. Retirou de um saco de pano roxo um conjunto de ossos gravados com runas azuis e os lançou no mar. Sussurrou palavras no antigo idioma e, onde havia pequenas ondas de água, surgiu um barco de ossos.

A bordo, Hela deslizava suas mãos sobre os ossos das carcaças que compunham a embarcação, repletas de runas cintilantes, cheias de encantos. Uller, mais que arqueiro e esquiador, era um encantador verdadeiramente versado nas artes da escrita.

Não pretendia ficar muito tempo em Midgard. Os vivos adorariam bani-la se pudessem, mas eles jamais conseguiriam evitá-la para sempre. Hela esperava a todos, mesmo que ninguém a desejasse, felizmente ela tinha uma paciência memorável. Seja como for, pretendia voltar para Niflheim, para junto das almas o quanto antes e, principalmente, antes que Odin percebesse sua saída. Uller pareceu ler sua mente.

– Seria bom se disfarçar, tanto aos olhos dos homens quanto dos deuses, por sorte tenho isso.

Uller lhe deu um manto cinzento e maltrapilho, que conjurara da própria névoa e dos flocos  de neve que rodopiavam no ar. Presenteou-a com um broche de prata, que ela usara para prender o manto na base do capuz que escondera sua face.

– Isso tornará você tão misteriosa quanto uma neblina aos olhos dos vivos. Não será perturbada.

Prontos para partir, deixaram as praias. A embarcação de ossos chacoalhava sobre as ondas tempestuosas de Niflheim, leve demais para ser afundado. Apesar disso, surpreendeu-se com o quanto oscilava, suas mãos agarraram fortemente o barco. Avistou uma aurora boreal eterna entre as nuvens escuras e, em um instante, o barco mergulhou por completo em uma onda ascendente, Hela segurou a respiração. 

Emergiu entre a água salgada e espuma. Avistou um céu claro e sem nuvens, repleto de montanhas iluminadas, estas cobertas por mantos de florestas verdes. Hela permaneceu imóvel admirando o horizonte distinto.

– Bem vinda à Midgard. 

A Herdeira de HelOnde histórias criam vida. Descubra agora