Capítulo 4

20 3 0
                                    


A floresta era vasta e densa. Adentrou-a após incontáveis dias terrenos, contados pelo sol que corria pelo céu como se estivesse em fuga, e pelas longas noites, ambos ritmados pelos passos incessantes de Hela. A neve começava a dar sua cor aos pinheiros. Sentia os ciclos de caça dos animais uns contra os outros: insetos, roedores, pássaros e veados pereciam, alguns deles para corujas, lobos e ursos, outros para as inconfundíveis almas humanas, estas agora bem enterradas em suas peles de couro para se proteger do gelo.

O cheiro da morte, sutil e imperioso como o silêncio, estava espalhado pela floresta. Ouviu um pio ruidoso no céu. Knud estava avisando que avistara algo adiante. Hela atravessou um curioso rio envenenado, que corria espalhando um estranho rastro da podridão pela floresta.

Ao se aproximar do que Knud anunciou, deparou-se com uma vila humana, com suas casas de madeira e palha em meio à floresta. Havia cadáveres espalhados pelo chão, cobertos por palha entrelaçada. Alguns de seus espíritos ainda vagavam por ali, um tanto absortos e cegos para a própria morte. As pessoas permaneciam em silêncio por longas horas, mas vez ou outra sussurravam:

– O inverno já chegou. Tem certeza que vamos ficar aqui? – dizia um caçador ajustando a corda de seu arco.

– Quer que abandonemos os doentes? – disse uma mulher.

– Prefere ficar com eles e atravessar para Hel? A terra está congelando e mal vai nos deixar enterrar os que se foram e cuidar dos que ficam não é mais fácil. A caça está escassa e não há comida o suficiente para o inverno todo. Se não ficarmos doentes por causa deles e dos mortos ainda podemos morrer de fome e frio.

– Eu não vou deixá-los, Dragno.

O caçador soltou um longo suspiro.

A doença que os afligia era alastrante, curvava os corpos em espasmos de dor, fazia-os negociar com o fim, fazer promessas, delirar com os momentos de paz e desejar que tudo passasse. Assistiu em pouco tempo algumas almas desencarnarem naquela vila. Uma mãe jovem e sua criança de colo, uma pequena menina e um caçador, Dragno. O futuro deles não estava envolto nas ilusões da glória dos Aesir, mas num descanso tão cru quanto seu fim, em seu reino gelado como o inverno. Havia algo de franco naquelas mortes para ela.

Hela caminhou entre os espíritos, que ao perceberem sua presença, curvavam-se ou se assustavam ainda mais com sua realidade. Ela ajudou os que desejavam seguir caminho para seu reino, tocando-lhes as testas com ambas as mãos. O caçador agradeceu com um sorriso antes de partir. Ao passo que os vivos não pareciam vê-la, exceto um velho moribundo, uma mulher cuidadora e uma criança sobrevivente. Esses procuravam com curiosidade quem estaria envolto em um manto de neblina, e logo desviavam o olhar ao perceber sua natureza. Queriam afastá-la, então, de bom grado, Hela atravessou a vila e seguiu seu caminho rumo ao sul.


Knud a acompanhou pelos vales entre as montanhas frias e de solo pouco fértil, onde a neve já começava a cobrir o horizonte como um manto cobertor. Ouvia os ventos e o farfalhar das folhas nos céus, e as pegadas dos animais na terra. A maioria deles se retirava do inverno de alguma forma, os pássaros voavam para longe, alguns outros, como os ursos, encolhiam-se em abrigos para o inverno. O mundo inteiro parecia ter se retirado para dormir. 

Seguiu sua caminhada pelas terras congeladas. Hela sentia a morte se abater sobre os vivos menos afortunados. Alguns eram animais solitários, outros eram os aldeões que deixaram a vila afetada pela doença e fome. Hela viu um corpo de um cervo praticamente intacto, mas ao tocá-lo com sua mão ressequida, viu a morte dele em campos cinzentos, preso entre galhos, onde uma tempestade de neve se iniciava. A neve conservava os corpos, mas não os poupava, era letal, puxava-os para a morte sob o manto pesado do sono. Knud pousava diante dos cadáveres e suspirava em lamentação.

 A vida se encolhia diante do frio, as pessoas nas casas, as árvores abandonavam suas vestes castanho-alaranjadas e abraçavam uma aparência morta, os animais se enfurnavam em suas tocas e de lá não saíam. Os rios aos poucos abandonavam seu fluxo intenso. E os lagos se transformavam em pedras de gelo até onde era possível ver. Em um mundo sempre em movimento, o inverno parecia ser sua noite e envolvê-lo com suas cobertas brancas em sono profundo e imóvel. O gelo era mesmo um estranho feitiço de paralização, e se impunha contra a vida como a própria morte.

O inverno de Uller, apesar de belo, era perigoso, a morte se alastrava e a terra dormia com indiferença à vida. Dia e noite ficavam confusos e quase indistinguíveis. Hela não se sentia tão distante de casa ao caminhar nas florestas nevadas. O barulho dos passos sobre a neve era revigorante, entre os ventos ruidosos e cortantes, e o bater constante das asas de Knud era sua companhia.

Knud vez ou outra pousava em seu ombro, antes de se erguer novamente entre as árvores esqueléticas para assistir uma alvorada ou crepúsculo. Brincava de desviar dos galhos, de planar nas campinas agora cobertas de neve. Às vezes até mesmo andava sobre suas garras de pássaro e engolia flocos de neve com o bico. A roupa dada por Uller lhe deu uma nova vida. Ao vesti-la, o garoto talvez tenha se tornado o que era verdadeiramente.

Hela pegou-se pensando como seriam as minúcias do encantamento de Uller e aquela distinta palavra a atravessou novamente: conexão. Era ao mesmo tempo forte e misteriosa, não dava pistas de si, não era possível generalizá-la, era algo particular, ao contrário de sua natureza de morte, que abrangia todos os vivos.

Pensava sobre os espíritos que lhes contaram de suas vidas, a conexão marcava a perda de suas famílias, de suas terras, de seus amores. Tentava se lembrar de sua própria família. Loki estava entre os Aesir que a renegaram, e sua mãe, Angrboda, que era gigante, não deusa, estava, portanto, em outro reino. Não tinha nenhuma lembrança memorável deles e não se interessava em ter. Estava feliz entre os seus em Niflheim, mas nem os espíritos nem os seus servos pareciam próximos dela. E se houve algo que aprendeu com as vidas de que falavam é que na morte sempre se morre sozinho. 

Knud mergulhou entre as árvores e cortou o ar perto dela. Hela sentiu o vento da rasante percorrer seu rosto e acompanhou as asas negras baterem ascendendo rumo ao céu, revelando uma imensa montanha entre os galhos e o céu nublado. 

A Herdeira de HelOnde histórias criam vida. Descubra agora