Uma batalha ruidosa acontecia. O gelo de Uller e seu arco contra a espada e astúcia de Odin. Uller, o belo deus do inverno, brilhava intensamente nas cores da aurora boreal. Vez ou outra se dissolvia em pura luz apenas para desviar de um golpe de seu antagonista e depois ressurgia em outro ponto, com flecha de gelo pronta para ser disparada do arco. Às vezes chegava a disparar três ou quatro, mas Odin as aparava habilmente com a própria espada.
Uller lançou uma onda de gelo que consumiu o chão e ascendeu em espiral ao seu redor. Como se previsse, Odin se aproveitou e deslizou sobre o gelo, e, alcançando rapidamente seu oponente, desferiu um golpe certeiro. O deus do gelo conjurou um escudo de mesma matéria para aparar o golpe em seu lugar. O disco oval logo se partiu ao meio, logo antes de Uller se tornar luz e ir novamente a outro ponto, para longe do alcance de Odin.
As aves negras do Pai de Todos estavam paralisadas no chão, guinchavam ruidosamente, mas suas asas estavam contorcidas e imobilizadas em posições estranhas. Runas de luz percorriam todo o seu corpo e emitiam fumaça em suas bordas. Um feitiço. Hela perguntara se foi Uller que enviara o encantamento, pois seu corpo também estava marcado com as letras arcanas, com significados cheios de poder e mistério.
Pouco tempo se debruçou sobre isso. Levantou-se e foi até Knud assim que o avistou. O espírito caído no chão parecia congelado em um estado meio garoto e meio ave.
– Knud! – recolheu-o em seu colo. – Knud...
A criança já havia morrido antes, mas a morte tinha sua face de mistério para além de qualquer sentido, Hela bem compreendia, metade de seu corpo falava disso. Estava acostumada a sentir uma profunda indiferença sob a curiosidade que tinha com os mortos. Mas algo parecia entrar em ebulição, alguma forma de preocupação.
Ouviu o ruído de uma espada se chocando. Ao erguer os olhos, avistou a espada de Odin cravada em gelo logo sobre sua cabeça, impedida apenas pelo feitiço congelante de Uller, que ascendia sobre ela como uma onda do mar, mas rachava, prestes se partir. Flechas de gelo silvaram no ar atrás dele, Odin tentou puxar sua espada, mas sem sucesso, grunhiu quando foi atingido nas costas.
Hela deitou Knud cuidadosamente no chão e se levantou. Encarava Odin e ele a encarava em retorno. Olhos distintos em ambos, múltiplas línguas. Morte e vida, sabedoria e lei. Corpos que encarnavam ao mesmo tempo ecos de todos os seres.
– Não somos inimigos, Odin.
Mais flechas silvaram e se alojaram em suas costas. Dezenas de estilhaços se espalharam quando ele finalmente livrou sua espada.
Uller surgiu ao seu lado, arco e flecha erguidos contra o deus.
– Já lutamos antes, não hesitei porque você é o rei dos Aesir antes, nem o farei agora. – disse ele com fúria em seus olhos de aurora boreal. – Quem você enfrenta é uma força além de você.
Hela ergueu seus braços, percebeu runas de fumaça branca pulsando sobre sua metade morta, tal como havia nos corvos paralisados do Pai de Todos. E runas de outro inscritas em sua metade viva. Sobre sua cabeça havia uma coroa de runas feitas de ambas as matérias fundidas, fumaça e ouro. Seus dedos oscilaram, pulsantes, e mais runas surgiram no ar exalando névoa.
Odin expulsou as flechas de suas costas com uma forte contração, respirou fundo e guardou a espada.
– Por que me atacou? – indagou ela.
– Não tenho todas as respostas, Hela, você me mostrou isso. Eu ainda me senti lá quando voltei.
– "Lá" aonde? – indagou Uller. – Não ouse ardis aqui, eu os reconheço bem.
– Lutando contra minha morte.
– Eu o mostrei seu destino. – Hela acenou para Uller para que acalmasse os ânimos, mas o arco dele permaneceu imóvel, a flecha encaixada na corda esticada, pronta para ser disparada.
Odin assentiu. Sua face era tenra como de um eremita, e seus olhos eram tempestuosos e astutos como sempre.
– Não pense que não lutarei para negá-la na hora vindoura, criança.
Hela assentiu.
– Até lá, você sabe bem qual é o seu reino, seus súditos. – seu olhar caiu sobre Knud. – Ambos temos responsabilidade pelos mortos.
Odin deu de costas e caminhou sobre a planície congelada em que haviam caído. Sangue dourado manchava seus mantos, mas ele não mais parecia sentir seus ferimentos. Acima e atrás dele estava o fúnebre campo de batalha que havia visitado. Virou-se no último instante:
– Até mais, herdeira de Hel. – Odin se desfez em um jato arco-íris rumo ao céu, rumo ao lar dos Aesir.
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A Herdeira de Hel
RomanceHela é a personificação da morte. Seu corpo é metade vivo, metade morto, lado este sempre evitado e temido, seja pelos mortais ou deuses. Niflheim é seu lar, e Hel, reino dado a ela por Odin, é o lar dos mortos, que ela cuida e direciona com mãos j...