Seu olho de todas as cores pulsou quanto tocaram as mãos, por astúcia do deus ou por acaso tivera de deixar a bússola de Uller sob o manto. Odin recolheu as mãos de Hela sobre uma de suas palmas e com a outra cobriu-as com um cordão de cipó dourado. Um entrelace entre eles foi criado. Hela se perguntava se aquilo, o toque e a corda que reafirmava a união das mãos, seria uma conexão.
– Você já existia nesse mundo antes de encarnar enquanto filha de Loki, criança. – disse ele, encarando as mãos com um olhar contemplativo, como de um artesão que decidirá o que irá fazer com matéria bruta. – Esse é um feitiço simples. – Odin a observava, precisamente o olho de da metade morta de Hela, escuro como o mistério que sua forma esconde. – Preciso que pense no meu destino, Hela. Aquilo pelo que existo como rei dos deuses.
– Seu destino? – Odin assentiu em resposta. – Como pensarei em algo que não sei?
– Não precisa saber, você acessará. É plenamente capaz disso. Encare meus olhos, estranhe sem medo, sinta o cordão que nos liga e pense no que lhe falei.
Hela encarou, como pedido, o olho cinzento como um dia nublado e o outro colorido como um arco íris. Era ao mesmo tempo o início e o fim de uma tempestade, contemplou. Manteve-se pensando nisso, no fim, ao passo que se perdia no olhar do Pai dos deuses. Sua face deixava de fazer sentido quando vista muito de perto. Sua expressão se tornara completamente estranha. Sobre seus pulsos o cordão dourado pesara, quente e em profundo ardor, até queimar sua pele.
A governante de Helheim gritou e seu grito logo se tornou um eco. O ruído dos ventos se seguiu, fazendo-o se perder no tempo sem deixar vestígios. E então, trovoadas ruidosas preencheram seus ouvidos.
Quando abriu os olhos, raios percorriam os céus, junto a relâmpagos brancos que pintavam a chuva da tormenta com faíscas luminosas. Água corria pela face dos combatentes, milhares de homens e mulheres em dourado e prata, com longas capas vermelhas, azuis, roxas e verdes, em vastos campos de batalha. Acima deles os deuses guerreavam contra todo tipo de criatura monstruosa e gigantesca que havia jurado sua morte no passado. Centenas de anos de rancores e juramentos entre seres de todos os reinos encontravam um desfecho.
A terra estava gelada, coberta por um inverno jamais visto, que se alastrou por todos os horizontes, norte a sul, leste a oeste. Nos mares, Thor lutava contra Jormungandr, a grande serpente que sustentava o próprio mundo. Seu combate fazia com que terremotos fervorosos e ondas gigantescas se espalhassem e destruíssem tudo à sua frente.
No céu, Sól e Mani fugiam, em suas carruagens dourada e prateada, dos lobos gigantescos, crias de seu outro irmão Fenrir que corriam para devorá-los. As estrelas caíam ao redor deles com a chuva, e uma fenda vermelha surgiu no horizonte, rasgando o céu ao meio.
A própria Yggdrasil tremia, era possível ouvir os ruídos do dragão Nidhogg, em Niflheim, roendo as raízes da árvore, antes de ascender com Hela sobre suas costas através de um abismo que se abrira na própria terra. Como em um sonho, viu-se distante, sobrevoando a batalha sob as asas putrefatas e ensanguentadas do dragão que passou milênios consumindo os mais perversos e cruéis. Um pássaro negro e vermelho sobrevoava a cabeça da deusa, acompanhando-a em seu voo sombrio. Knud.
Os mortos de Niflheim se juntaram aos exércitos de Muspelheim, liderados por Loki, seu pai, que ria e gargalhava a cada golpe que desferia contra seus inimigos. Estava enfim liberto da prisão onde os Aesir o colocariam em Midgard, mas ainda carregava em seus pulsos partes das correntes de rocha usadas para aprisioná-lo.
Assim como o chão se abrira em uma fenda que deu passagem à Hela e seus súditos, o céu o fez para que Sutr e sua espada flamejante, seguido por seus filhos, emergissem pela grande fenda flamejante. Seus golpes de espada davam início a ondas de fogo que cortavam e derretiam lentamente, em lava e calor, todos os reinos.
Em algum lugar, entre os deuses, todos trajados com suas armaduras mais brilhantes, Hela avistou o destino de Odin. O Pai de todos lutava fervorosamente contra Fenrir, o lobo de todo o mal, sobre seu cavalo negro de seis patas. Mas, bem sabia, o duelo estava fadado à morte de Odin, e todos aqueles deuses sucumbiriam naquela última batalha.
Os deuses treinaram por toda sua vida para aquele momento, um em que sua finitude se realizaria. Admirou não se atemorizarem diante dela, pelo menos não em seus atos, alguns apenas em suas mentes e corações, mas lutavam contra esse medo com tudo o que podiam. A batalha deles parecia ganhar um pouco de sentido e dar-lhes em abundância a todas as suas vidas. A morte era seu destino.
Seus pulsos queimavam fortemente. Hela abriu os olhos, mas nada viu além da tempestade final. Tentava respirar por sua metade viva, mas nenhum ar entrava. Seu corpo se enrijeceu e se curvou.
Crack!
Centenas de cristais se quebraram, um ruidoso eco de gelo se estalando.
Hela!
O chamado era apenas um eco indistinguível, ruído puro. O que mantinha algo de si mesma eram seus pulsos ardentes, quando latejavam. O mundo se dissolvia em puro caos, um nada tão flamejante quanto gelado. Não havia nada além daquela destruição, conhecia bem aquilo e então, não conhecia mais nada.
Hela!
Crack!
Seus olhos se abriram. O céu estava pintado por luzes azuis, verdes e amarelas dançando no céu. Hela estava no ar, distante, seus punhos fortemente fechados e o cipó dourado fragmentado ao seu redor. Caía livremente. Uller, logo abaixo, gritava seu nome.
– Hela! – Criou uma onda de gelo que avançou no chão se cristalizando contra Odin.
– Você pagará velho caolho! – Uller esbravejava, sua voz ruidosa como a de uma coruja. – Mil invernos vão cobrir este mundo um dia e você nada poderá fazer para impedir!
Hela sentiu peso sobre seus olhos, estava caindo em sono profundo enquanto despencava. De repente, sentiu algo agarrar sua mão, não Uller ou Odin, mas uma garra de ave.
Ouviu o pio ruidoso de Knud, não saberia dizer se era o de uma coruja, um urubu ou corvo. O garoto em corpo de ave chamava por ela, suas garras se cravando em seus pulsos. Seu voo era insustentável, eles despencavam rapidamente rumo ao chão gelado.
Os corvos de Odin o atacavam, arrancavam suas penas e logo Hela conseguia avistar o garoto afogado sob as penas. Tentou gritar, mas não conseguiu, puxou Knud para perto de si em sua queda, e logo sentiu as garras cortantes dos corvos gêmeos sobre sua pele. Agarrou Knud com força, olhos fortemente cerrados. Os corvos gritavam, mas pararam de arranhá-los misteriosamente. Então, o impacto veio.
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A Herdeira de Hel
RomanceHela é a personificação da morte. Seu corpo é metade vivo, metade morto, lado este sempre evitado e temido, seja pelos mortais ou deuses. Niflheim é seu lar, e Hel, reino dado a ela por Odin, é o lar dos mortos, que ela cuida e direciona com mãos j...