Capítulo 3

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A luz do sol era tão intensa que ofuscou Hela. As montanhas eram verdes e até o mar parecia dócil. As focas acompanhavam o barco em seu nado suave e saltavam à superfície ao seu lado.

– E o que achou?

– Um pouco ensolarado... 

Uller não conseguiu conter um riso diante de sua ironia.

– Não se preocupe.  – disse. – É meu trabalho resolver isso a partir de agora.

Nuvens cinzentas surgiram no horizonte anunciando uma tempestade de neve.

– Você tem a estação para vagar por onde quiser, andar por aí, ter suas próprias vivências.

Hela o agradeceu.

– Mas qualquer coisa, se você se sentir perdida... – ele tirou uma pedra azulada de um de seus bolsos. – Vegvísir, como se chama, é uma bússola. Irá guiar seu caminho, para que possa vagar sem se perder.

Hela recolheu a pedra circular em suas mãos e ele explicou o desenho gravado. Acompanhou com seus dedos as formas cavadas, linhas em todas as direções com runas em seu entorno.

– No seu centro está Midgard. – apontou ele. – Cada direção aponta para um caminho e representa cada um dos demais dentre os nove mundos.

– Como saberei usá-la?

– Ora, Hela, é possível usar as estrelas e montanhas para se guiar, mas essa bússola é como a primeira de todas. Aquela que nos impele de dentro.

Hela sentiu o esclarecimento percorrê-la. 

– A intuição?

Uller assentiu.

– Ah e, mais do que sua intuição, é só esfrega-la que eu ajudarei.

– Agradeço profundamente, Uller. – ele sorriu em resposta. 

Quando o barco enfim atracou na areia negra, Uller moveu graciosamente suas mãos, mas nada aconteceu.

– Que estranho...

Uller saltou novamente ao barco e, quando saiu, segurava uma criança pela gola de sua camisa.  Ela evitava olhar para Hela, mas seus cabelos flutuantes não deixavam dúvidas de onde viera.

– Parece que mais alguém viajou conosco. Conhece?

Hela o observou. Quando tentava focar em qualquer aspecto de sua face, ela escapava da visão, mas conseguia vê-lo, seus cabelos negros oscilavam no ar como se estivesse submerso. Era uma criança afogada. 

– Esse não é meu reino. – disse Hela. – E muito menos o lugar para um espírito de Niflheim.

– Bem, está meio tarde para voltarmos. Querendo ou não o tempo passa rápido nesse mundo, melhor não atrasar meu trabalho aqui. 

– Mas vagar com ele pode chamar a atenção do Pai de Todos.

Uller deu de ombros e pôs o menino na praia.

– Não se... – ele puxou de uma de suas bolsas de andarilho um conjunto de penas. – aqui garoto, escolha três delas.

Hesitante, ele tocou duas penas negras e uma escarlate. Uller sorriu e separou-as.

– Qual seu nome, espírito? – disse ele, enquanto amarrava as penas junto com um pequeno osso gravado em um cordão.

– Knud. – sua voz mais parecia um eco abafado em uma caverna.

– Então, um cordão para Knud. – deu-lhe o colar de penas. A criança o colocou ao redor do pescoço.

Hela o encarava com curiosidade.

– É uma roupa de pássaro. Assim ele poderá viajar por essa terra e acompanhá-la. Mas, para que o encanto funcione sem seu encantador original, preciso que você toque a runa, herdeira de Helheim. Pois a chave é a conexão.

Hela se aproximou da criança, que a encarava com certa expectativa. Estranhava um pouco tudo aquilo, aquele encantamento, afinal, o que seria uma conexão? Mas fez como foi pedido.

Tocou delicadamente o colar com dois dedos de cada mão. A princípio nada aconteceu, mas com um suspiro de Knud penas negras surgiram e o envolveram como um tornado. Por fim, ele ressurgiu como um pássaro negro com uma faixa de penas vermelhas nas pontas das asas. Lembrava-a algo de um corvo, um abutre e uma coruja em si.

Uller desfez o barco em pequenos ossos outra vez, os quais ele recolheu com cuidado em uma sacola de couro.

– É minha deixa agora. Estarei sempre por perto, ao menos até onde a vista alcança. Aproveitem a jornada!

Após se despedirem, o deus do inverno saltou aos céus e se desfez em neve. As nuvens cinzentas já alcançavam a praia e flocos brancos flutuavam no ar intensamente.

Oculta por seu manto cinzento, Hela iniciou uma caminhada lenta e ritmada. Knud a acompanhava pelos céus. Voava com tanto fervor que transbordava de satisfação com a nova forma. Para uma criança afogada, voar pelos ares devia ser incrível.

Hela não estava mais entre os mortos de sua morada. Havia o farfalhar da vida nos ventos e cada passo era um destino, uma cascata que deslizava entre o futuro e o passado. Aqueles passos lhe eram estranhamente naturais, familiares e profundamente esquisitos. Estava curiosa para ver onde seus pés a levariam. 

A Herdeira de HelOnde histórias criam vida. Descubra agora