Hela vagou por meses. Viu de perto as terras humanas, os ciclos do sol e da lua, que oscilava entre suas diferentes faces. Midgard não era luxuosa como o reino dos Aesir, mas tinha sua majestade sincera. Hela refletia sobre como aquele mundo, Midgard, tal como na bússola que Uller lhe dera, parecia de alguma forma central: Odin ajudou a criar as pessoas e a ordenar os reinos, foi seu grande empreendimento, era um dos pais dessa humanidade. Mas abandonou mais da metade das almas de seus filhos para que ela cuidasse, e alimentava seus salões com as almas de seus escolhidos. E assim seria até o fim dos tempos, ela bem o sabia.
Sobre o que se revelou ser um vasto planalto, Hela seguiu as pistas do velho rastro de morte que havia lhe chamado a atenção: cadáveres congelados, estandartes carcomidos e rasgados pelo vento incessante e lanças partidas, que formavam o horizonte espinhoso com o qual ela se deparou. Guerreiros mortos. Com seu fim glorioso, deviam ter conseguido passagem ao reino de Odin. Atravessou o campo de batalha, o silvo dos ventos contra os panos era tudo o que ouvia.
Knud desceu dos céus e andou de mãos dadas com ela, uma vez mais com a sua face afogada, forma que só usara quando puderam se abrigar em cavernas. Comunicavam-se com os olhos e, em meio à campina repleta de mortos, os dele pareciam lamentosos e ressentidos. Os dela, no entanto, transpareciam uma tranquila curiosidade.
Pareciam tão frágeis os cadáveres ali imóveis. Hela imaginava que tipo de história havia culminado em sua própria destruição e deixado suas carnes para os corvos. Imaginava também as palavras que um dia foram capazes de pronunciar antes de serem levadas pelos ventos para nunca mais serem ouvidas.
Não havia espíritos ali, é claro, eles haviam sido levados pelas mulheres aladas de Odin e Freya, as valquírias, para se encontrar com o pai dos deuses e habitar os salões dourados de Valhalla. Ainda assim, vez ou outra agachava-se e tocava uma das cascas congeladas. Os corpos guardavam a memória, assim como os espíritos.
Vislumbrou primeiro uma forja. Ouvia marteladas contínuas para modelar uma lâmina. Um homem magro, mas forte, girava-a para lá e para cá testando seu equilíbrio, em uma dança com a espada que se repetia com destreza. No campo de batalha não havia tempo para manobras, testes ou erros. Ele dançou com sua lâmina, rasgava inimigos que passavam por ele sem tê-lo notado no caos da batalha e nesse movimento mal teve tempo de perceber quando o metal atravessou seu pescoço. Um fluxo contínuo inundou sua garganta. Seu estômago se embrulhou e em poucos segundos estava ajoelhado, sua espada no chão e as mãos, ensanguentadas sobre o corte. Seu mundo se escureceu e girou, quando caiu no chão já não sentiu mais o impacto.
Em outro corpo, sentiu uma onda de raiva. Viu um homem robusto, mas gentil. Ele pensava em casa, era um fazendeiro, que por sua força e pelas pressões de sua vila foi convocado ao combate. Por que invadem nossa vila? Jamais fizemos nada a ninguém, pensara ele. O ressentimento continuou, ajudou-o a perfurar os invasores com fervor, até que três lanças o atravessaram. Sua barriga era um tormento puro, sua cabeça latejava e, de joelhos, lembrou-se de sua família. As memórias de casa eram tudo o que havia restado.
Um invasor se animara com a viagem em alto mar. Ele ria em meio às tempestades de neve que se aproximavam da costa anunciando a chegada do inverno. Esperava voltar para casa mais rico do que partiu, mas encontrou o túmulo ao invés disso. Outro se ressentiu na batalha quando seu irmão foi derrubado, morto, lançou-se em fúria e quando a morte chegou abraçou-a de bom grado.
Adentrou as memórias de corpo atrás de corpo, fazendeiros, guerreiros, comandantes, remadores, escravos, e seus momentos finais só tinham a dor em comum. Alguns tinham expectativas do pós-vida, em sua ânsia por continuar a lutar. Outros só tentavam afagar o ressentimento e guardar em suas últimas palavras seus entes queridos. Em pouco tempo nada daquilo faria mais sentido, pois o silêncio absoluto habitaria suas cascas.
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A Herdeira de Hel
RomanceHela é a personificação da morte. Seu corpo é metade vivo, metade morto, lado este sempre evitado e temido, seja pelos mortais ou deuses. Niflheim é seu lar, e Hel, reino dado a ela por Odin, é o lar dos mortos, que ela cuida e direciona com mãos j...