20: Ornitorrincos

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Ao nosso redor, tudo era estática se transmutando nas formas em sombra que se desenhavam ao longo do chão repleto de bagunça

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Ao nosso redor, tudo era estática se transmutando nas formas em sombra que se desenhavam ao longo do chão repleto de bagunça. Pincéis, capas desbotadas de vinis do Belchior e do Cazuza, uma meia solta de patos que Julieta deixou jogada perto da porta e alguns enfeites de planetas e estrelas que pendiam de um cordão recém colocado na parede por ela.

Estávamos no seu quarto, condensados na cama de solteiro feito duas sardinhas em seu refúgio de lata, presos em uma nuvem densa de abstrações iridescentes que faiscavam cores por toda parte.

Ela já havia tirado minha camisa há um tempo, para me fazer de tela para alguma das suas pinturas surreais. Na linha do meu quadril, esboçara com seu pincel uma porção de estrelas amarelas, as quais escorreram ao longo do meu tronco até a linha da minha clavícula. Permiti-me, também, mergulhar os dedos no seu pote de tinta laranja, e seus braços receberam minhas digitais tingidas de cor. Ela riu enquanto me beijava, e eu me senti o miserável mais feliz do universo por podermos existir ao mesmo tempo.
 
Virada para mim pouco depois, com as bochechas permeadas de vislumbres de laranja e azul, seus dedos giravam preguiçosamente o anel de prata ao redor do meu dedo indicador, vez ou outra escorregando para os sinais nas proximidades do meu pulso. Sua respiração ecoava devagar contra meus lábios, vez ou outra perdendo o compasso sempre que minhas digitais trilhavam a rota da sua cintura, mesclando nossas linhas até não restar mais nada no mundo além da minha existência se unindo à sua.
 
Gostava de como o ar entre nós não era composto somente por moléculas vazias. Sempre havia mais do que mero silêncio; ele estrondava nos nossos ouvidos e corpos como se fôssemos uma música das que se usa para dançar no meio da rua, vibrando nas bordas do meu cérebro e fosforescendo em cada traço da minha epiderme que tocava a  dela.

Temia que pudesse ouvir todo o meu barulho interno, ou percebê-lo com seus olhos de coruja. Talvez já tivesse o feito, todavia. Às vezes, não conseguia ter certeza de muito a respeito do aspecto emocional de Julieta, considerando que era uma atriz tão boa quanto eu. Possivelmente, melhor.

— Sabia que ornitorrincos tem leite cor de rosa? — Quebrei o vácuo com a primeira coisa que me veio à mente.
A orquestra ritmada da sua risada preencheu o ar diante da minha pergunta. Ela procurou meus olhos com os seus, e os uniu numa mesma órbita.
 
— Sério? — Empolgação mesclada à expectativa polvilhou seu tom.
 
Acenei com a cabeça, confirmando.
 
— É. O leite meio que se mistura um pouco com o sangue da mãe ornitorrinco, daí fica rosa.
 
Ela riu novamente.
 
— O ornitorrinco é tipo o bicho mais estranho do mundo. — Constatou. — Eles parecem uns alienígenas estranhos que vieram para a terra nos vigiar, com aqueles pés de pato, cauda de castor e bico imenso.
 
— E são os únicos mamíferos que botam ovos. — Lembrei.
 
— Exatamente. Eles, tipo, não deveriam existir, mas existem. – Torceu o nariz em uma careta engraçada. – Bem que eu queria ter um ornitorrinco. Ou um mini porco. Ele ia se chamar Presunto.
 
— Imagina se seu porco ganha consciência do nada. Ia pensar que seu plano é fazer o coitado de lanche, daí convocaria seus outros bichos para organizar uma super rebelião contra você. — brinquei.
 
Ela riu, aqueles olhos interdimensionais estreitos em meio ao curvar dos lábios de coração, até sua risada gradativamente ser engolida pelo sopro sutil do vento. Todas as centelhas ao redor das suas pupilas extravasaram rumo ao meu corpo feito fios de energia, envolvendo membro por membro, célula por célula, um milésimo antes de se erguer sobre mim, pressionar minhas bochechas e me beijar como se o próximo minuto não fosse existir para nós.
 
Sabia que precisava falar sobre a conversa com Tom, mas no momento em que sua galáxia explodiu contra a minha no enlace das nossas bocas, tudo no mundo se converteu em interferência. Seus lábios me empurravam até o ponto mais abissal do Oceano Atlântico, sacudindo minhas veias com um amontoado de torpor azul e me preenchendo de bolhas que flutuavam e flutuavam até a estratosfera, brilhando e queimando minhas células em um amontoado faiscante de cores inventadas.
 
Carimbei os dedos na sua nuca, deixando a outra mão se perder no caminho da sua cintura, a textura macia da blusa pincelando uma centena de tons incendiários nas minhas digitais. Pairávamos pelos anéis de algum planeta abstrato, sobrevoando astros e bebendo explosões estelares.
 
Eu adorava perceber os sopros cada vez mais curtos da sua respiração irradiando em ondas mornas nos meus poros, para se converterem em chama que inflamava minhas veias e todo o resto.
 
— Acha que a gente tá estragando tudo com isso? — Sua pergunta foi um murmúrio contra minha boca, entre os ofegos que deixávamos escapar.
 
— Acho que estamos melhorando tudo com isso. — corrigi, imprimindo meus lábios nos seus em um toque rápido. — Você tem o melhor beijo do universo, jujuba.
 
— Quantas alienígenas você já beijou, para fazer o comparativo? — O questionamento veio acompanhado do seu riso descontraído.
 
Mirei seus olhos, curvando os lábios em um sorriso torto enquanto deixava o polegar percorrer uma trilha indefinida até o seu queixo.
 
— Você foi a única.
 
Sua boca se entreabriu levemente por um segundo, até expulsar um riso, balançando a cabeça em negação para quebrar o meu toque.
 
Recolhi as palmas até as laterais do meu corpo, encolhendo-me de leve diante da percepção de que talvez tivesse a incomodado com a minha fala, não por não ter gostado, mas porque provavelmente soou sentimental de um jeito que não deveria ser.
 
Se controla, seu idiota. Vocês criaram regras. Elas existem por uma razão. Você precisa se segurar. Não fala demais. Não sente demais. Engole, respira. Esfrega as mãos na calça. Não pensa nisso. Não foi nada demais.
 
— Nosso próximo passo é encontrar Miranda Skawinski para lhe entregar a carta que minha mãe escreveu para ela. — Julieta entoou, de súbito, saindo de cima de mim,  e se deixou cair ao meu lado. — Tem um endereço no envelope, e é daqui da cidade. Acho que Juliana escreveu antes de viajar, tipo uma carta de despedida, e não teve coragem de enviar, ou sei lá. De qualquer forma, pertence a ela. Talvez não more mais nessa casa, mas talvez os novos moradores possam dar algum tipo de informação que ajude a gente a encontrar ela. Ou, pelo menos, saber o novo endereço para tentar enviar a carta.
 
— Ótimo. — Alcancei seus olhos. — E qual vai ser o próximo passo, depois desse?
 
— Minha mãe fez um mapa dos lugares de Amaré que mais foram importantes para ela. Acho que quero ir em alguns deles. Pelo menos, nos que ainda existem. — Deu risada. — E você vai comigo. Se quiser, é claro.
 
— Já que você insiste... — Descontração enfeitou meu tom.
 
Ela gargalhou.
 
— Seu pai conversou comigo. — comecei a falar, debaixo do seu erguer de sobrancelhas. — Ele está preocupado com as suas fugas noturnas.
 
— Duvido muito que esteja realmente preocupado... — Acidez embebeu seu tom.
 
— Ele não é tão frio quanto você pensa. Pelo menos, não pareceu ser enquanto conversávamos.
 
Seu riso irônico se dissipou no ar.
 
— Se não é, onde esteve todo esse tempo? Ele não consegue sequer me olhar nos olhos, Romeu. Já me viu chorando, e não pareceu dar a mínima! — O rancor contido nas palavras era como uma adaga feita de veneno.
 
Suspirei, percebendo o quão inútil seria tentar convencê-la do contrário. Mas isso não era suficiente para me impedir de insistir naquele caso, porque, da forma mais inesperada possível, eu tinha visto um pouco do lado do seu pai que ele se esforçava para manter sob a superfície. E trazer à tona a própria vulnerabilidade é provavelmente mais difícil do que explorar o lado escuro da Lua.
 
— Acho que ele pode só não saber como fazer isso. Como se aproximar de você. — Experimentei. — Talvez, possa tentar ajudá-lo. Você pode mostrar as coisas da caixa para ele, ou sei lá.
 
Ela expulsou o ar ruidosamente.
 
— Não acho que isso vá resultar em algo bom, mas... talvez eu tente em algum momento. — Comprimiu os lábios. — De qualquer forma, caso esteja mesmo preocupado, não tem mais motivo pra ficar assim. Não vou mais fugir de casa à noite.
 
— Por quê? — A palavra me escapou de imediato, permeada de uma decepção que não consegui camuflar.
 
— Porque agora a gente se beija, Romeu. — Obviedade recheou a resposta. — Então, você vai querer transar comigo. Tipo, muito. E eu nunca fiz isso, e nem sei se quero fazer algum dia. Dizem que dói para caralho, e eu não fui feita para sentir dor.
 
Não esperava por essa revelação. No meu íntimo, sempre imaginei que Julieta já tivesse transado com, pelo menos, os três últimos caras com quem saiu, incluindo o ex que ficou com outra enquanto montávamos uma peça do Peter Pan no teatro da escola.
 
Quer dizer, é para onde as coisas costumam caminhar entre duas pessoas que se gostam, especialmente as que aparentam ser tão confiantes como ela.
 
Às vezes, eu inevitavelmente a imaginava com alguém, se entregando dessa forma. Mas evitava pensar demais nisso, porque esse tipo de imagem, ao mesmo que me excitava só por mentalizá-la nessa posição, também trazia um estranho nó ao meu peito, que pressionava meu coração com tanta força que a dor imaginária ameaçava se tornar física.
 
— Eu não insistiria nisso. Só ia sugerir se você deixasse claro que quer.  — Pontuei, com convicção, tentando afastar aquela linha de pensamentos. — E eu também nunca fiz.
 
Minha fala a fez erguer uma sobrancelha cética.
 
— Tá brincando comigo? — Sua entonação deixava claro o quão inacreditável minha fala pareceu para ela. — Você avançou praticamente todos os degraus com a Cíntia, no ano passado. Faltou só um. Nunca... tentou subir o último com mais ninguém?
 
Torci o nariz em uma careta, rememorando os flashes daquele momento desastroso que eu adoraria esquecer. Foi muita bebida envolvida, toques estranhos e bocas em lugares mais esquisitos ainda.
 
— Acho que só consegui tudo aquilo porque estava bêbado, e eu nunca mais bebi depois daquele dia horrível. — Baixei o olhar para o meu colo, comprimindo os lábios. — Sóbrio, a ideia de fazer sexo me deixa meio... estranho. Não que eu não queira, nem pense nisso, mas... a parte de fazer parece assustadora. Todas aquelas expectativas, e a pressão, é tudo muito bizarro. Vai ficando tipo uma bola de neve de noias. — Tentei explicar, voltando a fitá-la.
 
Ela assentiu, uma faísca de compreensão reluzindo em suas íris.
 
— Fala alguma. — Incentivou.
 
Soprei um riso desconcertado.
 
— Broxar, fazer alguma coisa muito errada e gozar rápido. — A resposta foi certeira. — Tipo, pelo que dizem, é diferente fazer com outra pessoa, de quando você faz sozinho. Falam que é bem melhor, e às vezes não dá para segurar.
 
Uma careta torceu suas feições.
 
— Tenho medo de contrair a pior infecção sexualmente transmissível que se pode existir.
 
—Sífilis? Gonorreia?
 
— Não. Um filho. — Riu, impelindo-me a fazer o mesmo. — Também tenho medo da camisinha se desprender e entrar tão fundo que eu possa precisar de cirurgia para tirar. — Deu outra risada. — Como eu explicaria isso, sei lá, pro médico? Ou pro meu pai?
 
Ri novamente.
 
— É por coisas assim que eu acho que paus deveriam ter braços. Só que bem pequenos. — Fingi seriedade. — Seria impossível uma camisinha sair em um pau com braços.
 
— Concordo plenamente. Daria até para ele usar um mini cachecol.
 
Um sorriso se esboçou em suas bochechas, replicando-se no meu rosto de forma involuntária.
 
— O que eu quero dizer é que... — Fiz uma pausa, vasculhando-me por dentro em busca de palavras que fizessem sentido. — Gosto da sua companhia. Até ficar sem fazer nada com você consegue ser muito bom. — Puxei o ar, na esperança de esfriar o fervor que se dissolveu no meu rosto com a fala. — Então... se quiser invadir meu quarto mais algumas noites, a janela vai estar sempre aberta. E eu juro que não vou tentar nada. Nadinha. — Ergui as palmas no clássico sinal de rendição.

Ela arqueou as sobrancelhas.

— Vou pensar.

Não contive um sorriso.

- Não quer ler a carta para Miranda, que sua mãe escreveu?

Seu olhar estonteante deixou claro o quanto a ideia a empolgou.

- Não acha que isso é invasão de privacidade?

- Já se fazem quase vinte anos. Então... acredito que não.

Foi a deixa que precisava para saltar da cama e pescar sua mochila nas proximidades da minha escrivaninha.

Ela capturou o envelope, torcendo os dedos para o abrir, e fisgou a carta do seu interior amarelado.

- Lê para mim? – Seu pedido me pegou de surpresa.

- Por quê?

Um suspiro impaciente lhe escorreu.

- Só lê.

Pesquei o papel envelhecido. Meus olhos percorreram o caminho das palavras, e minha voz começou a dissipá-las em voz alta.

Querida, estou caindo.

Estou me afogando em um mar que não possui cores, naufragando em mim mesma, com os braços pendendo da beira do abismo que compõe o fim do mundo. Rodo pelos anéis de Saturno, esbarrando em asteroides e engolindo o vácuo. Sinto que não vou viver muito tempo. Meu esqueleto está quebradiço, enferrujando feito o pôr do sol à medida que respiro e ando, como se eu não fosse nada além de engrenagens de metal. Pensei que fosse composta de amianto, mas o fogo do mundo se provou capaz de me derreter. Como Van Gogh, a única coisa que me consola é observar as estrelas.

Deixo pedaços de mim no caminho, desintegrando pouco a pouco a minha existência. Pouco importa no universo além de você e a menina celestial que cresce dentro de mim. Ela nascerá logo, e será resplandecente. É a única coisa que me traz um vislumbre de alegria.

Não quero permanecer nessa cidade. Esta vida comum, de mulher que vai à padaria, ouve o rádio e cultiva flores não me comporta mais.

Se eu decidisse fugir para o sol, iria comigo, amor? O sentimento que nutre por mim ainda é tão forte quanto as ervas daninhas que florescem em um jardim, ou já se converteu em puro vácuo?

Diga se fugiria comigo, e planejaremos isso juntas.

Com o amor dos tolos, Juliana.

Com o amor dos tolos, Juliana

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