Percepções da traição

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Escutar, ou não, o que Enid tinha para dizer foi a decisão mais difícil daquele dia. Eu já não confiava no que via ou ouvia, sabia que tinha algo errado comigo. Além disso, existe esse sentimento diferente. Em qualquer outra situação, se outra pessoa estivesse no lugar dela, eu a teria matado com facilidade, mas Enid se esgueirou por dentro de mim como uma planta se alastra pelas paredes de uma construção antiga, se prendendo em qualquer vão disponível para subir cada vez mais. Quando se percebe, a parede é o puro verde, no meu caso, o puro arco-íris.

O fato é que perder a pessoa que me deixei apegar me dói no fundo da alma. Enid fez algo em mim que ainda não sei decifrar, nunca fui boa com sentimentos mas algo aconteceu ao longo de sua insistência em aceitar meu jeito hostil e pouco afetuoso.

A porta se abriu e a garota veio em minha direção, caminhando cautelosamente enquanto segurava uma garrafa de água.

- Eu trouxe água. - Disse Enid a alguns passos de distância, como se quisesse mostrar respeito pela situação.

- Obrigada... - Respondi. Peguei a água mas não bebi, ainda não confiava nela.

A tarde estava, aos poucos, dando lugar para a noite. O céu levemente alaranjado refletia sua luz por metade do rosto da garota a minha frente e tomava o quarto se misturando às cores da janela do lado pertencente à loira. A garota se manteve em silêncio, olhando para a janela como que evitasse me encarar.

- Me dá um motivo para acreditar em você. - Eu disse desviando meu olhar que antes se voltava para ela.

- Eu não sei como... - Ela responde voltando seu olhar para mim.

- Você disse que não prendeu Thing. Então me mostra a tal surpresa que existe dentro daquele saco preto em seu armário. Se não foi você, não tem o que esconder. - Olhei para Thing e ele tamborilava os dedos no lençol de forma nervosa.

- Eu queria fazer isso de um jeito menos tenso... não era para você ver dessa forma. - Ela disse indo em direção ao armário.

Enid se abaixa e mexe em suas roupas até puxar um saco preto que estava embaixo da pilha de roupas coloridas, a garota suspira, consigo sentir certo receio dela, mesmo de costas ela parece ponderar a ideia.

Enid se levanta e carrega o saco com cuidado até mim.

- Por favor, não fique brava. - Ela diz enquanto estende o embrulho em minha direção. - Eu não iria fazer assim mas acho melhor mostrar de uma vez.

Eu peguei o objeto de sua mão, o acomodei em meu colo e desfrouxei a abertura. Dentro, em meio à dobras de um pano igualmente preto, havia uma pequena caixa. Olhei para Enid e ela parecida preocupada e ansiosa. Peguei a caixa em mãos e ameacei abrir.

- Se... se você não gostar eu vou entender, eu só... eu não sei. Só olhe com carinho, se puder. - Ela disse antes de me deixar prosseguir.

Segurei a tampa da pequena caixa preta e a puxei para cima. Fiquei confusa ao ver um objeto circular de ouro envelhecido.

- O que é isso? - Perguntei.

- Pega... - Enid disse receosa.

Tomei o objeto em minhas mãos. Ele tomava o centro da palma da minha mão e em seu topo havia uma gravação.

" Sempre que um ponteiro se mexer, pensarei em você. "

- Enid...? - Não queria acreditar no que achava que estava entendendo.

A garota não respondeu, ao invés disso fez um gesto para que eu abrisse o objeto. Sua feição de nervosismo e ansiedade me causavam um sentimento estranho, como um enjoo mas de certa forma agradável. O pequeno objeto circular tinha um cordão em um de seus lados e em outro tinha uma pequena trava a qual pressionei, a tampa se soltou e eu a afastei abrindo o objeto ao meio. Dentro havia um relógio mecânico em pleno funcionamento, seus ponteiros eram pretos com pequenos detalhes dourados e apontavam para marcações igualmente pretas de números romanos; no interior da tampa, uma foto que havíamos tirado no último dia antes das férias, onde Enid sorria abertamente a ponto de seus olhos fecharem, seu braço direito estava jogado por cima de meu ombro enquanto o outro segurava o celular para a foto, eu a olhava esboçando um leve sorriso confuso. Não sabia que sorria dessa forma ao lado dela.

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