CAPITULO I: SOZINHO

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Trajei minhas melhores roupas naquela noite. Um conjunto de peças brancas do leste do oriente, com discretos bordados amarelos marcando os limites do tecido grosso, escolhido para enfrentar o frio que fazia do lado de fora da minha biblioteca. O frio é um estranho vizinho que sempre está vindo nos visitar ao fim de um ciclo. Quando este bate a porta recolhemo-nos dentro de nossas casas, nos aproximamos dos outros ao invés de afugenta-los. Recolhemo-nos dentre de nós mesmos. O frio convida a uma viagem confortável ao introspectivo e com sua mão gelada nos faz quietos. Sossegados. Este inverno, o frio americano, não causava em mim o menor dos reconfortos que havia precisado. Ao descer ao nível da calçada vazia, tremores recolheram minha mão, inquietação sapateando nos pés e remexendo minha pasta, aonde estava o convite. Três noites frias caíram em Nova York após a chagada do convite e durante três noites, o frio não parecia silencioso companheiro. Muito se igualava a uma coruja branca encarando-nos nos galhos negros de uma arvore seca. O ar gelado trazia desesperante insegurança. Insegurança não para consigo, sobre tudo uma falta de segurança. 

Nas calçadas irregulares e ondulantes demais, circulavam algumas "pessoas quaisquer". Sombras que usam da luz para se mover, e se recolhem ao anoitecer. Pessoas que vestem os mesmos uniformes todos os dias, com sua rotina tão retina, que pouco tem a esconder. Não possuem segredos, se os possuíram, já os esqueceram. Pobres Pessoas Quaisquer que circundam o mesmo trajeto, ditam as mesmas falas, e ao fim do dia, noutro dia acaba.

"Pessoas que podemos encontrar todos os dias, em todos os lugares", ditei em minha mente ao caminhar entre eles, experimentando fazer parte das sombras que compõe o horário da noite. Não podia negar que havia certa beleza na forma como os mares de gente revestem o chão e, logo acima deles, como faróis num mar cinza, os postes ornamentados, muito antigos, seguiam enfileirados sobre nossas cabeças. Se pudéssemos carregar a luz conosco, a guardaríamos no bolso. Em preferência no bolso da frente, onde a esfera luminosa sugeriria partir de dentro de nós. Negaríamos nossa própria escuridão e viveríamos contentes por sermos iluminados. É, elas estão no lugar certo, acima de nossas cabeças é o seu lugar.

Contraste notar-se-ia ao cruzar a avenida e seguir pela rua dos casarões. Meu destino não se encontrava longe de minha morada, uma inesperada sorte e desconfortável incentivo. Dispensei a ideia chamar um dos poucos cocheiros que ainda haviam na cidade. Os autos, carros de taxi, eram elegantes e seriam o ideal para o evento a que fui convidado. Pouco mais do que causar uma péssima impressão pode ser feito ao chegar a pé em um evento de sociedade. Entretanto estava indo a procura de fundos, a procura de elevar meu nome e o nome do meu negócio, conseguir um sócio, alguém interessado por literatura, um homem culto e, se possível, também imigrante.

Belíssimas construções destacavam-se em ambos os lados da rua, cuja grandiloquência esboçavam, em cada esquadria e pórtico, a adoração a arquitetura clássica, réplicas tão perfeitas do nosso estilo europeu que quase sentiria estar em casa se não fosse pela interrupção bruta de uma construção ou outra que se ergue ameaçante entre casarões. O avanço fabril, febril, incansável, das máquinas, enroscando nas casas e transformando moradias em blocos. Grandes blocos que, recolhe o peito a pensar, também me lembram de casa.A questão nunca foi as novas moradas. Os novos métodos de construir e decorar as ruas, eu pouco entendo destes meios e muito pouco me importo com o mesmo. Apenas afogo os olhos em lembrar do antigo casarão que lá havia. Abandonado como um velho pai, uma velha mãe, que acolheu sua família e ao mostrar as primeiras fissuras na face, ficou para trás. Com seus tetos caídos, janelas a querer fechar, as tabuas rangendo ao tentar mexer. Casarões abandonados e com um simples sopro, derrubados.

Checo novamente o endereço em meu envelope, perdido em meus pontos de referências que se foram no tempo. Quanto mais avançava pela rua reta, mesmas luzes me acompanhavam, mas mais ficavam para trás. Logo havia um escuro desconfortante ao meu redor, no qual os postes não tinham o menor interesse em combater. Eu sigo censurado do céu noturno pelas copas das arvores que formavam paralelamente o caminho, escuras demais para causar qualquer conforto aquelas horas da noite.

O Palácio das VozesOnde histórias criam vida. Descubra agora