O Palácio das Vozes

CAPÍTULO XV: CONSEQUÊNCIAS

Havia um borrão manchando meus olhos fundos do cansaço. O cheiro de fumaça ardia minhas narinas me fazendo lembrar do imenso calor que a pouco experimentamos na Sala de Jantar. Ao fundo, ouvia-se os choramingos engasgados de srt.Dellá, que estendia os braços crispados para frente do peito, em um quente e molhado vermelho sangue. Éric se arrastou até ela, tirando o casaco escuro e oferecendo uma proteção para as queimaduras.  Eles trocaram  um silencioso e fúnebre olhar, em um mudo compartilhado, enquanto erguiam-se do chão.
 Aquilo não podia estar acontecendo. Não era justo Tyler ter sido morto pela minha mentira. A culpa rastejava minhas costas, saia de dentro de mim e mostrava sua face como o cadáver de um policial, o cadáver de Tyler agora sorridente e tão morto quando o outro.

Sufocado pela sensação, desconfortável pela culpa, quebrei o silêncio apontando para a lareira:

- Por que?.. Por que ele foi.. Por que ele foi levado por algo que eu fiz? Não.. Não faz sentido. Não é justo. - Consegui formular uma frase. Uma frase enevoada e solta, mas com lógica. 

Os dois olharam para mim como se agora lembrassem que eu estava vivo ainda. Não me dirigiram a palavra e voltaram a analisar os braços vermelhos da srt.Dellá. Agora cobertos pelo casaco de Éric. Me recolhi contra a parede, em uma tentativa fútil de fechar os olhos e ignorar a realidade. Minhas mãos tremulas ainda seguravam a fotografia de minha família, mas minha mente continuava a repetir que era minha culpa.

A verdade, querido leitor, é que eu sou um homem simplesmente egoísta. Isto é um fato que no fundo de minha mente todos sabíamos existir. A única diferença era que agora eu via esta verdade em primeiro plano. Sentia o gosto real do meu maior pecado e assistia as consequências dele. Eu tomei atitudes muito egoístas e mentirosas. Fui um mentiroso como personagem e como escritor, não por passar verdades falsas e alteradas pelo meu mais belo prazer e benefício, mas por tentar omitir até este exato ponto todos os defeitos sujos e asquerosos que tenho. Cogitei começar o conto revelando o homem covarde e egoísta que sou, que deixaria até seu melhor amigo ser comido em prol da própria defesa, entretanto quis ser um herói, um verdadeiro protagonista e te prender na história por tempo suficiente, para que começasse a torcer por mim. Só que para isto, eu não poderia ter tamanha sujeira sob o assoalho. Uma esposa e um filho pequeno abandonados, uma carreira de escritor fracassada, a insignificância de uma vida em que tudo deu errado. Investimentos frustrados. Legados que se tornaram banais demais para manter. Nenhum grande feito, além de pequenas insignificantes conquistas artísticas, as quais tanto tendo agarra-me para simplesmente poder me sentir alguém. Acho que o que mais dói agora é a chance de todas aquelas pessoas que diziam que eu não conseguiria, estarem certas. Que minha luta contra a realidade fria e a fuga para o mundo das histórias fantásticas tenha sido sim uma forca que eu mesmo construí. O que mais dói é cogitar que perdi meu tempo correndo atrás de sonhos impossíveis e deixei morrer o que era realmente importante.

Retornando ao momento presente, não queria que ninguém se machucasse com minhas mentiras. Eu vejo meus defeitos. Cometi falhas... Tropeços... Só não pensava que eles atingiriam e machucariam tanto outras pessoas. Me referindo a dolorosa fotografia, não sabia que ser egoísta traria tanto sofrimento a outros além de mim mesmo. 

Escondo o rosto com as mãos, sentindo o toque gelado e dormente de meus dedos em minha pele. Respirava profundamente, com a mente pesada e sentindo o peso das horas de corrida e esforço, as quais jamais cheguei perto de experimentar. Meu corpo quis entrar em estado de inércia, talvez dormir um pouco ou desmaiar de vez.

Perdemos dois dos nossos, tão perto da linha de chegada. Dante, nosso guia e o mais novo de nós. Tyler, que apenas estava aqui atrás da esposa. Ele não tinha culpa. De todos, ele tinha uma filha. Uma filha que agora estava sozinha. Meu filho pelo menos tinha uma mãe. Eu deveria ter queimado ao invés de Tyler.