Você vinha descendo a colina mas a névoa e a neblina chegaram antes. Séculos antes. Ou até minutos, eu diria.
Neblina essa que se movia como as ondas por entre as árvores, por entre os troncos, pelas pedras.
Por entre as paredes que eram diversas, que subiam em todas as direções. Eram como filas de aposentados com boas pernas. Todas ainda estavam de pé embora capengas e desgastadas. Claramente cansadas.
E nada se via além delas. Ali, naquele mundo limitado pareciam infinitas. Mas apenas isso. Pareciam.O lugar não se extendia pelo horizonte, não. Não era tão pequeno. Mas tu sentias, pelo cheiro do vento, que não acabava por ali. E estavas certo.
Pois Aquilo ainda estava sendo criado. Portanto ainda criava.Não era um labirinto, não. Embora agora, após meses e eras, não parecia muito diferente de um. Muitos se perdiam por ali. Menos Aquilo.
Um cego não se perde em sua casa. Por mais que os móveis se movessem constantemente de lugar, devido a erosão e a ação danosa do tempo. Aquilo sempre soubera onde estava. Não lembrava aonde deveria ir ou aonde podia estar, mas sempre se lembrava de ter estado. Pelo menos em algum momento.
E assim, sem fio e sem Ariadne, podia se encontrar. Mas nunca o pensava fazer. Apenas levantava novas paredes e as pintava. As moldava ao redor, por entre si.
Mas ao se mover se via que não estava preso a elas. Não, não faziam parte dela, daquilo. Não. Era apenas por onde vivia. Por onde modificava.
Tudo era antigo e toda a poeira do lugar diziam isso. As ervas daninhas, as vinhas e os pacotes de cigarro, as bitucas. Os passarinhos, os ossos, as plumas, e as penas já duras (demais para qualquer crime, como acordar), as teias, as cinzas. A Tinta descolorida, restaurada.E por ali se movia.
E não se assustou quando você chegou. Nem tampouco percebeu que você era uma presença.
Por, pensando alto você disse:
- Olha, parecem flores.
- Não, não. São mãos, olha. Nessa época eu não entendia os dedos nem os gestos, por isso apontava para os lados fazendo curva. Por isso não jogava futebol de botão nem tocava o que podia. Está vendo? Por isso enterrei esse violão aqui. Junto com as cordas vocais e esse manequim. Ele guarda as uvas dos vinhedos nessas paredes. Por isso as fiz ocas e cheias de janelas. Para que se guardem coisas e tomem sol. Cresçam.
Depois de prontas fazem esse incrível vinho que é ótimo para viagens. Eu estava brincando por aqui. Apenas de passagem. Por isso essas pedrinhas. Elas me diziam que eram irmãs de um rio. O vinho precisa ser diluído em água. Sim, sim. Água. Argamassa......ARGILA.- E é pra lá que a gente vai? Você achou um rio?
- Hm. Se você quer um rio precisaríamos de uma canoa. Deve ser por isso que escondi esses gravetos.
- Não se faz uma canoa com gravetos...
- Não. Mas a noite por aqui é fria e úmida. Por isso uma fogueira é uma boa. Olha, da pra ver melhor os desenhos com o fogo. Só toma cuidado porque eu acho que foi assim que me queimei da última vez. Coma. Ah, não se preocupe. Essas aqui eu peguei na geladeira. Aproveitei e trouxe um cobertor. Eu esqueci que aqui era a cozinha.
Sua cabeça doía? Sim. Mas não mais que a de Aquilo. Mas as asas de frango estavam uma delícia, de acordo com seu apetite voraz e sua boca suja.
- Olha, uma pedra chorando. Hahahaha. Entendeu? Na bíblia tem aquela história do cara que bate na pedra e ela jorra água. Ele devia ter só conversado. Pedido água. O QUE VOCÊ QUER?
E na verdade você não tinha entendido muita coisa. Na verdade não tinha entendido nada e era isso que assustava. Pois elas, as mulheres com um só olho e vários fios te avisaram.
Você só queria sair dali. Queria não ter chegado. Mas era tarde demais porque já tinha ido. Estava lá.E veja, eu sei que você lembra de toda essa parte. Sim, se lembra. Mas eu não. Então por favor, tenho calor, tenho sede, me refresque a memória respondendo uma última questão:
Você teve coragem? teve coragem de responder Aquilo? não me lembro. Não. Não lembro. Que droga.
Não me lembro tão bem...
e nem deveria. Pois Aquilo não te mata. Mas te engole vivo com seus pensamentos. Então.... Acho melhor só.....
só...
só esqueça o que eu digo. O que eu disse.Apenas, apenas continue, esqueça. Me fale de você..
Me fale com tua voz calma sobre as coisas bonitas que posso pensar. Sobre como é macio o calor do sol e de como são boas as canções de se ouvir. E me fale também de como é bom só sorrir. Se calar. Sobre como é bom respirar.
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Laranjas Podres na Fruteira
Poetrycontos mal acabados e histórias. Palavras. Sobre tempos de confinamento (não só pandemicos), então por favor, tenham calma, critiquem