Miolos com alho e limão

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Antônio arranhava suas costas marrons na esperança de que de baixo do carvão houvesse uma pele branca.
Sônia queimava seus cabelos  com o ferro na esperança de que eles parassem de ser tão ruins com ela.
Dona Maria chorava as lágrimas que salgavam o arroz da casa Salvatore. Maria não havia jantado na noite anterior e sua barriga doía enquanto esperava que seus patrões (ou senhores, eu diria) terminassem de comer.

E os três modestos de pele escura pensaram juntos que quando Deus mandou que se lavassem, deveriam ter pulado de corpo inteiro nas águas do rio. Talvez a essa altura seriam tão limpos como seus empregadores. De pele alva, lavada do pecado.

Talvez agora seriam eles que usariam o chicote e provariam a comida ainda quente. Talvez seriam deles as privadas a serem limpas e as manchas de merda nas cuecas lavadas.

Enquanto contavam suas moedas e o troco da passagem (o único troco que a história lhes permitira dar), pensavam e refletiam sobre como talvez teria sido uma dádiva ser privilegiado com a falta da cor. E ali, enquanto se sentiam culpados e se comparavam entre si, viram um corpo estirado no chão da estrada. O número de ambulâncias e de viaturas que fechavam a avenida denunciavam que aquele corpo ali não era da cor do asfalto. Não.

Eles ouviram de fora a polícia dizer: “Hoje em dia tá impossível mesmo. Tão assaltando todo mundo. O indivíduo não pode nem ter trabalhado pra comprar o que tem que já tem neguinho querendo tomar”.

Enquanto o ônibus passava lentamente pelo acostamento, os olhos curiosos não podiam deixar de notar a vítima baleada no banco do motorista. Era o Seu Barroso. Patrão da prima de Kássia, que é amiga da filha de Antônio, cabelereira de Sônia e neta de Dona Maria.
Nossa santíssima trindade, ali dos bancos do ônibus se felicitaram  com algo nesse dia de cão. De cão, não. Pior! Nesse dia de preto. Se felicitaram ao perceber que pelo menos o sangue deles também era vermelho. E a visão da cabeça estourada no vidro do parabrisa lhes abriu o apetite. Passaram juntos no açougue e naquela noite e fizeram miolos para o jantar.

Laranjas Podres na FruteiraOnde histórias criam vida. Descubra agora