Das ruas, perto do cais

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Pelas ruas de Salvador havia um homem que vendia bacias, panelas e amolava alicates e facas. Um homem sem nome mas com endereço fixo, perto do cais, no fim isolado da praia. Era canhoto e tentava sempre ser direito. Devoto de nossa senhora, dava flores a Yemanjá e mantinha sempre uma relação cordial e respeitosa com os espíritos. Era um acumulador de entidades e um homem de muita fé.

Odiava o som do mar e as areias da praia. Julgava o primeiro muito alto e a segunda muito invasiva, entrando por todos os lugares sem pedir ou avisar.


Foi em um dia anormal de maré baixa que ele descobriu (ou melhor, recebeu) de seu inimigo uma pequena escultura que o encantava e enchia de pavor. Fascinado por suas feições e sua coroa de corais, levou-a para casa, colecionando assim mais uma divindade.

Aquela noite, como as que viriam, não foi nada tranquila. Apesar de tanta fé, passaram a ser cada vez mais mal dormidas, atormentadas. E seus banhos de ervas, orações e bençãos de Padim Ciço de nada adiantavam.


O homem não tinha companhia, alguém ou vizinho algum que o ouvisse berrar noite adentro e acordar suando frio pela manhã.

Era durante a madrugada que as criaturas vinham lhe capturar, assombra-lo no mundo onírico.


Passou a tentar ficar acordado mas o barulho odioso das ondas sempre o hipnotizavam de modo covarde. E com o cerrar dos olhos elas vinham. Seres humanóides com tentáculos e presas. De olhos famintos e cintilantes. Moreias, serpentes marinhas titânicas e seres e feras pré cambrianas de forma vil e carapaça impenetrável, que caminhavam pelos leitos dos oceanos a éons atrás.

Toda noite ele era afogado, engolido e devorado. E toda manhã cuspido, regurgitado, sentindo sempre que parte de si nunca retornava pois jazia nas entranhas do monstro de Jonas, digerida.


Numa manhã acordou com os pés cheios de areia. Na outra, as costas cheias de sal. Na próxima, encharcado com a água da praia (ou suor. Era difícil distinguir).


O terror se tornou insuportável, insustentável como os copos de plástico e canudos devolvidos pela maré, quando numa dessas manhãs se percebeu já sem fôlego tomado por feridas e marcas de presas, garras, tentáculos.

Naquela noite resolveu não dormir. Não vendeu panelas nem bacias, ou amolou facas e alicates.


As águas se agitaram, urrando em fúria e trazendo a ventania. Toda a casa (ou o que um dia foi uma casa) do homem (ou do que um dia foi um homem) estremeceu. Até que ele veio, assustador. O silêncio; bateram à porta.


Ali estava a criatura mais bonita já vista. Não era um homem, não era mulher. Estava além de nós e seus olhos de maré alta transbordavam poder e perigo. Unhas longas, olhos cinzas. Cabelos compridos, molhados ornamentados por uma coroa de corais.

- Você! A escultura... Ela..ela é sua?


- É uma das minhas, ou foi. Não me lembro mais. Ou não ligo.


- Foi você quem os trouxe, não foi? Tudo isso. Por favor, faça eles pararem. Eu já não sei mais o que fazer. Não sei se estou ficando louco. Eles me aterrorizam todas as noites. Não sei a quanto tempo não tenho sido o mesmo.


- Hum... E você já foi?


- Fui o que?


- O mesmo de você.


- Mas é claro. Bom... Acho que sim.


- Que bela coleção de inutilidades pequenas você tem. O que alguém como você poderia desejar?


- Eu já te disse. Eu só quero que parar com tudo isso.


- Sim, você disse. Isso é o que você quer. Mas veja, teus olhos castanhos me contam o que você deseja e isso é com certeza muito mais interessante. Você não acha? Perceba, assim como a refeição dos enfermos é a sopa, eu estava na primordial. Portanto, a existência e toda vida habita em mim como você aqui habita. Todo o tempo do mundo afundará em meus olhos. Náufragos, jovens à deriva, feras e criaturas. Tudo. Tudo habita em mim. Engolirei a terra e é diante de tudo isso que você treme. Mas teu olho, ah, esse não mente. Tu tens medo, sim. Mas isso não te impede, não é mesmo?


Eu estava cego de desejo. Sua presença. Me senti pequeno e me lembrei de minha mãe. Tudo estava bem pois aquilo cuidaria de tudo. E aquele corpo ali, me olhando e vendo através de mim, me deu fome. Fome de devorar, de ser devorado. Então me ordenou, manso.

- Venha .

Meu lábio tocou o seu, salgado. Viajei por trás. Vi a vida sair das águas, as primeiras jangadas cruzando oceanos. As naus varando os mares transportando ouro e povos retintos para longe da terra mãe. E as criaturas. Essas que enlouqueceriam qualquer mente sã, mas eu já não padecia dessa doença. Mas foi ali, em puro e genuíno gozar, me afoguei.




Laranjas Podres na FruteiraOnde histórias criam vida. Descubra agora