I
Morro de rir quando lembro o que Clarice me disse. Pior que nem era algo muito engraçado. A situação foi engraçada, a fala foi tão exata, eis o que penso, e puxa a roupa como uma doida! Doida? Completamente. E eu que tenho agora que limpar as roupas da casa – e são tantas. Ainda é segunda-feira, começo do dia e eu já estou morta de cansaço. Limpar banheiro, chão, a louça depois do almoço... São tantas gavetas que eu já perdi as contas, e todas entupidas de roupa. Como Carlos usa roupa, eu preciso colocar logo na máquina senão ele não tem para trabalhar. Ele usa umas cinco por semana. Mas Sara é pior, ela é a que tem mais roupa aqui e a que mais suja. Ela já está moça, vou logo ensinar a lavar. Minhas mãos não aguentam tanto assim. Haja vestido dela, é blusinha aqui, saia ali. Às vezes chega a irritar, fica usando tanta roupa, diz que tem suores, troca mais e troca de novo. E Carlos não organiza suas gavetas, aquela pilha de gravatas, diz a mesma coisa de sempre, "tenho que manter a boa aparência na empresa", fico atônita quando ele diz isso, por que não ajuda a manter a boa aparência daqui de casa também, hein? Poxa. Se eu te dar um salário você colabora, amor?
O único salário que o safado quer são os meus lábios. Ah, mas não reclamo, lindo os lábios quando se tocam. Na verdade, faz um tempo que não me toca... O que me preocupa mesmo são os lábios da minha filha, se eles estão sendo tratados bem. Aquele menino, o Matheus, fica grudado nela, a troco de um raio de um beijo! Já tive vontade de espirrar água para espantá-lo assim como se faz em gato. E o mais desagradável é ela falando para ele, "Você é meu gato" e ele a cortejar. Essa daí não puxou a mãe. Eu tentei de tudo, sempre orientei o melhor caminho para minha filha, mas esses jovens andam com umas amnésias que esquecem de tudo que a gente falou. Eles vão correndo desejando a liberdade, que eles mesmo estragam a liberdade deles. Agora Sara não sai de perto dele. Diz que tem medo de perde-lo. A menina ainda por cima é ciumenta, um medo de ser trocada por outra, um cara bonito como aquele, uma conversa afiada sem tamanho. "O cabelo dele parece o do Roberto Carlos!" Baita bobagem, mas a deixo sonhar. Não deveria deixá-la tanto. Se esses jovens querem mesmo ser livres, deveriam pensar em serem mais puros, reconectar com os sentidos da alma. Somente quando você está com sua alma limpa, em paz, você terá uma liberdade plena. E minha filha nem dá bola quando digo uma coisa dessas. Pelo menos a Clarice me ouve, vamos a missa... Bem, íamos a missa. Quero tanto vê-la sarada, não vejo a hora de se recuperar. Está de cama, mas sei que Deus vai melhorar. Deus é a salvação de tudo. Só Ele pode, só Ele. Ele fala comigo, eu sinto. Eu falo com Ele e não vivo sem Ele. Espera, vou colocar uma música. Ótima ideia! Não tem coisa melhor para arrumar a casa do que uma música.
O que vou colocar para tocar? Ah, já sei! Glória a Deus nas alturas! Perfeito, o hino é para Ele somente. Lá vou eu, me revirando na prateleira dos discos, procurando a música para Ele. E esse disco aqui, hein? Só Sara para gostar desses cantores populares bestas, bando de fajutos. MPB? Ah, isso é do Carlos. Não, o meu é esse aqui, esse que ouço somente com e para Ele. O louvor é lançado, aí está, o coro celestial, consigo ver a igreja toda cantando. E a minha fé se fortalece cantando aqui para o Senhor. Eu só tenho a minha humilde voz, sei que não é grande coisa, mas é tudo que eu tenho e é de todo meu amor.
É lindíssimo, mas dá para sentir o odor dos cigarros do Carlos nos discos dele. Ah, o meu amor anda mal, mal... Coitado, não acredita no poder do Todo Poderoso, não faz mais sua reza, parou de ir à missa. O coitadinho quer dormir, mas não consegue, aquelas olheiras no rosto dele. Falo que nem dá para ver, mas é mentira. Mentir é pecado, mas mentir por bem não é, é? Tudo bem, Ele me entende, entende o que estou passando com Carlos. É tão bonito, o rosto tímido, mas quando se aproxima mostra o leão que é. A voz no meio tom, entre o agudo e o grave, discursa tão bem, tem um dom para falar... Mas ultimamente ele está sendo consumido a cada dia. Preocupado, a dor na fala, as olheiras, o trabalho. Ele tenta disfarçar, mas sei como está sofrendo. Conta pouco para mim, mas com o que conta já sei o que realmente está acontecendo. Numa noite, ele disse para mim que estava com uma dor de cabeça e só queria ver um pouco de televisão. Sabia que ele precisava mesmo era de um chá, um bom colchão e um cobertor para logo adormecer. Foi o que eu fiz: fervi a água, levei-o para o quarto, peguei o cobertor e, quando fui servir a bebida quente encontrei-o de olhos fechados.
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O Mundo em Casa - História de uma Família
General FictionA história de uma família paulistana de classe média, contada sob suas particulares perspectivas e visões de mundo o seu cotidiano.