VI
Deixo a última gota de tinta azul cair no papel. Aqui como sempre, uma bela porcaria. Ali está a professora Soraya, uma infeliz que me atormenta desde que cheguei aqui. Ficar de recuperação até em artes, vê se pode? Até Natalia ficou meio grilada com ela, uma senhora que só pega no pé da gente e tem um talento para aborrecer. Só por causa de algumas faltas nas suas aulas e pronto! - rodei, tem que fazer trabalho de recuperação, sobre arte renascentista, diz que eu tenho que tomar nota. E você tem que tomar é no rabo. Agora a senhorinha fica aqui, observando de perto, senta na sua cadeira e mexe numa papelada - como se fizesse algo de importante. Não. Só fica aqui tomando conta desses fedelhos que nem ligam para você. E eu sou a mais bonita daqui. A maioria são feias e desinteressantes. Eu apenas balanço meu cabelo e pronto, meia dúzia de meninos já ficam ensandecidos por mim. E Soraya é desinteressante. Ela tem um cheiro ruim, uma mistura de cigarro podre com vinho de última categoria, uma gororoba danada. Encontro ela sempre fumando no estacionamento da escola, fuma ali perto da calçada, fica estressada e desconta no fumo. Falei, uma senhora desinteressante. Uma velha encardida.
Faltei quantos dias para você me prender nesse inferno? Não lembro. Uns dias aí. Mas faltei por um motivo, juro. O bom motivo era ele, Matheus e seus cabelos caindo nos meus braços, enquanto eu paro e aperto-o, dou uma mordida no seu pescoço e lá perco minha bala. Lembro naquele dia, uma delícia, eu mascando a bala e ele veio para cima de mim. Putz, e agora? Comprei outra. Foi o que foi. Melhor que a aula dessa nojenta. Mas meu trabalho tá melhor que o da Natalia. Nem dá pra comparar. Dou uma espiada por cima e vejo, o dela tem uns errinhos, o meu está perfeito. Está fazendo sua releitura de Mona Lisa. A arte dela não faz renascer e sim remorrer. Que inspiração. E minha inspiração é qual então? A boa e velha nota. O campo psicanalítico talvez. Deixei minha inspiração no inconsciente e agora tento trazer à tona. Vou dá-las à luz aqui. Como fazer isso? Dá uma droguinha e vê se funciona. Tipo Freud e seu uso de coca. Tem que ficar bem doidão para ter a inspiração. Parece que Natalia fica doidona ainda. No final do ano passado estava namorando um bicho-grilo. Um cara pra lá de doido, parecia chapado a maior parte do tempo. Ele falava de jeito tão suave... Me dava sono. Não sei como ela suportou ficar com um cara desses. E onde conseguiu um. Ela ficou com um cara desses por uns meses e foi capaz de deixa-la doida também. Paz e amor. Amor. Muito amor. Tem que amar e muito para suportar um cara desses. Mas não amou o suficiente e largou. O amor é livre, não? É livre para amar quem bem entender. E não quero amar você.
Mas ela mudou mesmo de uns tempos para cá. Enquanto bebíamos um suco na minha casa, perguntou sobre a nossa liberdade. A liberdade em nossos tempos. Até que ponto somos livres? Sei lá. Contou para mim, lá no Rio mataram um estudante num tal restaurante e fizeram baita de um protesto por causa disso, mas o que nós vamos fazer para mudar isso? E como você sabe dessas coisas acontecendo, Natalia? Ai garota, matam desde sei lá quando, que diferença faz nesse momento, hein? Tomou consciência agora, só pode. Ih, consciência de novo. Deixo o fluxo de pensamentos seguir como se deve, a associação livre, um método eficaz para a compreensão da mente humana. E nada desses malucos vindos aqui em mim fazendo essa histeria. Um surto coletivo. Mas eu sou um desbunde mesmo. Desbundei, minha nossa senhora.
E tem dias que eu não entendo bulhufas mesmo. Mãe com sua religião, não aguento mais falando de catequese. A doutrina religiosa emburrece. Nem quero pensar muito nela, porque também é meio estranha. Meu pai é menos pior. Anda bem quieto ultimamente, mas não tenho o que reclamar. Infelizmente eu tenho uma saudade. É, essa que é a droga, que merda. Preferiria quando eu não estava cheia de preocupações aqui na escola, minha vida e essa coisa de ir para a faculdade. Nem sei como funciona isso. Mas vou conseguir. Não sei como, mas vou. Ficar falando a teoria psicanalítica por horas. Tudo bem, pode ter essa abordagem de psicologia, mas gosto mesmo é de discutir sobre Sigmund Freud. E meio que retruco o Jung, mas não é a hora certa. A questão sexual é a mais latente de todas. Imagina eu vivendo somente pelas pulsões. A libido. Ah, seria a glória ou seria um pesadelo? Eu acho que seria uma glória. Ou as duas coisas ao mesmo tempo. Explodiria com Matheus e pá! Ficaria vendo estrelas. Mas a bizarrice de Édipo é algo que me deixa encucada. Eu devia pesquisar mais. E por que essas coisas aqui na escola é chata assim? Quando eu quis falar sobre sexo aqui na escola não deixaram. Por que não se todo mundo faz? Ou essas velhas professoras não fazem nada? Provavelmente. Um bando de caretas. Só tem velho e careta aqui. E Soraya é a pior delas, fica nesse cigarrinho e num papo furado o dia inteiro. Ah, eu prefiro nem dar bola. Sério.
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O Mundo em Casa - História de uma Família
Fiksi UmumA história de uma família paulistana de classe média, contada sob suas particulares perspectivas e visões de mundo o seu cotidiano.