Capítulo 4

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   As províncias ficavam um pouco distante umas das outras, mas apesar disso, frequentávamos o mesmo colégio, quer dizer, os filhos dos Chefes Provinciais frequentavam o mesmo colégio. Os filhos dos camponeses tinham mais opção de escolha. Haviam ao menos dois ou três colégios em cada província e se quisessem poderiam estudar nas províncias vizinhas. E os rebeldes eram quase como fantasmas, pouco se sabia sobre a existência deles. Eram um grupo que podia estar em qualquer lugar e isso assustava os Distritais.
   Em nosso último dia na escola os professores nos instruíram sobre as regras do PGRP. Eles nos contaram que quando metade do tempo de alistamento fosse cumprido, os filhos dos Chefes Provinciais poderiam pedir dispensa e retornar para casa. Eles participariam de uma cerimônia para se tornarem os próximos Chefes Provinciais, assumindo então o lugar de seus pais, porém apenas os filhos únicos ou mais velhos teriam o direito a fazer isso. Com sorte, eu passaria somente três anos longe de Daphne e Ernani. E também não pretendia me tornar o próximo presidente.
   Max parecia tenso quando saímos da escola, seu olhar estava fixo no chão enquanto caminhávamos até o portão.
   — No que você está pensando? – pergunto tocando em seu ombro o fazendo parar.
   — Só estou preocupado por você – confessa ele.
   — Não perca o seu tempo se preocupando com isso, eu não irei cometer nenhum erro. Prometo.
   — Thomas, eu não quero que você carregue esse fardo sozinho. Nós somos amigos e eu farei o possível para lhe ajudar a manter esse segredo dos Distritais.
   — Obrigado.
   — Eu acho que ficaria mais relaxado se comesse aquele bolo que o Claus faz – disse fazendo beicinho.
   — Você não tem jeito – digo balançando a cabeça. — Sinto que você gosta mais de Claus do que de mim.
   — Isso não é verdade. A minha relação com Claus é diferente, eu sou uma ótima cobaia para os experimentos culinários dele. E você é o meu melhor amigo.
   — Você certamente trocaria a minha amizade por um doce – provoco. 
   — É claro que não – responde imediato. Ele fica em silêncio por um momento e me lança um olhar pensativo. — Mas que tipo de doce seria?
   Dou as costas para ele e sorrio andando mais rápido para fugir dele. Max me segue, pedindo para falar e então corro o deixando para trás.
   — Só me fala qual é o doce. Thomas, espere!! – grita ele correndo atrás de mim.
   A carruagem da família de Max estava a nossa espera quando dobramos a esquina e o cocheiro nos conduziu até a minha casa. Aos poucos os guardas que ficavam no portão voltavam a sua rotina. Os ataques as residências provinciais haviam cessado, era como se os rebeldes estivessem se preparando para algo bem maior. Mas a calmaria que Daphne carregava em seu rosto desapareceria assim que eu entrasse no PGRP. Ela nos observou cruzar a sala e sentar no sofá.
   — Como foi o último dia na escola? – perguntou ela se juntando a nós.
   — Parecia que não ia terminar nunca. Os professores não paravam de falar sobre o programa de recrutamento e nos explicar as regras – diz Max sem pensar.
   Os olhos de Daphne perderam um pouco o brilho e seu sorriso diminuiu mas não se desfez por completo. Eu apertei de leve as costas dele abaixo das costelas e em reflexo ele afastou a minha mão com o cotovelo.
   — O Claus está aí? – perguntou percebendo o clima que criara.
   — Sim, querido. Ernani não precisou dele hoje e Claus voltou mais cedo, ele está na cozinha.
   — Na cozinha? – não era uma pergunta que eu esperava reposta. Olhei para Max que ficou de pé.
   — Nesse caso eu irei ver se ele precisa de algo. Com licença tia.
   Traidor. O insultei em pensamento. Max só queria uma boa desculpa para escapar e me deixar ali sozinho com uma bomba que ele armou e jogou nas minhas mãos. Se Daphne começasse a chorar do nada o que eu deveria fazer? Eu não sabia como agir quando isso acontecia e nem Ernani nem Claus estavam por perto para me ajudar. Respirei fundo e sentei no chão próximo ao pé dela.
   — Vai ser por um período curto, eu logo estarei de volta.
   — Eu sei – disse acariciando o meu cabelo. — Os seis anos que passamos ao seu lado foram os mais felizes que vivi e ver você indo para tão longe de nós me faz sentir um vazio que foi preenchido quando você chegou aqui.
   Eu afaguei os seus joelhos e apoiei a cabeça no braço da poltrona. Ela pousou a mão no meu rosto e me encarou com ternura.
   — Nós estaremos esperando pelo o seu retorno. Esta sempre será a sua casa.
   Seus olhos azuis estavam marejados e lágrimas pendiam de seus cílios que escorreram pela a sua face rosada. Seu cabelo estava solto e lhe dava um ar de casualidade, Daphne era uma mulher radiante e cheia de vida. As únicas vezes que a vi chorar na minha frente foi quando cheguei a essa casa e hoje, no meu antepenúltimo dia nela. Levantei e beijei o topo de sua cabeça. Não queria vê-la desabar em lágrimas assim novamente. Não por minha causa. Daphne deveria sorrir. Com a ponta dos dedos ergui o seu rosto para que ela me encarasse.
   — Eu só vou conseguir entrar no programa tranquilo se você me prometer não chorar. É claro que você pode chorar, você deve chorar quando estiver triste, isso irá aliviar o seu coração. Mesmo assim lembre-se de sorrir. Você já chorou muito, então sorria mais para compensar cada lágrima que derramou. Por favor.
   Meus olhos azuis refletidos nos dela se encheram de lágrimas que eu desejava não estarem ali para que eu pudesse ver nitidamente o rosto de Daphne. Não queria que elas rolassem pelas minhas bochechas mas pisquei para que elas saíssem de lá. Ela sorriu revelando os dentes brancos como a neve.
   — Obrigado por me darem um lugar para chamar de lar e por me encherem de amor. Eu te amo mãe – falei com a voz quase embargada.
   Ouvimos o som das botas contra o pisos olhamos ao mesmo tempo em direção a porta. Ernani estava parado nos degraus da entrada da sala. Não sabia há quanto tempo estava lá mas certamente à tempo o suficiente para escutar toda nossa conversa, as lágrimas em seu rosto entregavam isso. Ele era um homem com músculos bem definidos mas não exagerados, alto e o líder de uma província e apesar da aparência séria Ernani era muito emotivo e não se importava que o vissem desse jeito fora do trabalho.
   — Será que eu posso participar desse momento? – perguntou ele.
   — Pai? Você não deveria estar na Torre Distrital com os outros chefes? – indaguei me recompondo.
   — Daqui a dois dias o meu único filho irá para o recrutamento. Vccê acha mesmo que existe alguma coisa mais importante para mim do que está com ele agora?
   Eu sorri e o abracei. Não precisava mais me preocupar com as lágrimas de Daphne ou em ter feito ela chorar, Ernani a consolaria se necessário. Minha mãe se juntou ao abraço e pude sentir o perfume agradável de canela que ela usava. Eu provavelmente sentiria falta de ser acordado por ela todas as manhãs.
   Claus e Max voltaram a sala minutos depois de pararmos de chorar e cada um carregava uma bandeja com sucos e os doces que prepararam. Eles colocaram as coisas sobre a mesinha e nos serviram. Max sentou no tapete e me encarou esperando aprovação. A minha aprovação. Ele não precisava da dos meus pais, que adoravam ter ele por perto, era como um segundo filho para eles.
   Levei o garfo à boca com um pedaço do bolo no meu prato e ele acompanhou o movimento com os olhos. Claus também aparentava estar ansioso, o que era incomum para ele mas acho que Max teve certa influência sobre esse comportamento dele. Normalmente ele não se importava com esse tipo de coisa.
   Cítrico. O bolo tinha um gosto cítrico e a cobertura de chocolate amargo se harmonizava com o sabor. Pelo tempo de preparo, Max deve ter o ajudou apenas na decoração do bolo que estava impecável.
   — Está ótimo. Você e Claus se superaram – disse cobrindo a boca com a mão.
   Os dois ergueram a mão no ar e as bateram fazendo soar um estalo. A empolgação de Max era contagiante e fez os meus pais sorrirem. Eu sabia que era uma paz temporária mas eu aproveitaria cada momento daquele dia. Daphne e Ernani estavam se esforçando para chorar, eu sabia o quanto seria difícil para eles tanto quanto seria para mim.
   Quando o cocheiro de Max chegou eu o acompanhei até a porta.
   — Tudo bem você passar a tarde inteira longe da sua família? – perguntei.
   — É claro. Eles sabem que estou com você e também entendem a situação dos Bozasker. Apesar de eu também ser filho único, a minha relação com meus pais é diferente da sua com eles – concluiu. Seus olhos cor de mel estavam hesitantes.  — Você acha que eles vão ficar bem?
   — Não sei. Mas eu espero que Daphne e Ernani fiquei bem e sei que Claus cuidará deles durante esses três anos.
   — Você está certo. O que foi? – pergunta notando o meu olhar fixo em sua direção.
   — Estou pensado em adotar o seu corte de cabelo.
   — Só não garanto que vai ter o mesmo charme – brincou ele e nós rimos. — Nos vemos na segunda então?
   — Sim. Eu passo na sua casa para irmos juntos.
   Ele se afasta e o cocheiro abre a porta para ele, mas então Max para e vira para mim.
   — Aliás acho que você vai ficar ótimo de cabelo curto – diz ele da porta da carruagem e eu balanço a cabeça.
   Fechei a porta e subi até o meu quarto,  ainda tinha que arrumar as malas e decidir em dois dias o que levaria. Os Distritais nos receberiam um mês antes do treinamento começar para que pudéssemos nos acostumar com as instalações e com nossos colegas de quarto. Eu não me tornaria um guarda e muito menos o próximo presidente, voltaria para casa e sucederia Ernani.
   Coloco a mala fechada no banco estofado ao lado da cama e observo o uniforme enviado pelo PGRP, a prova concreta de que tudo aquilo era real e eu teria que fazer o meu melhor para sobreviver a isso. Suspirei. De qualquer forma só duraria três anos.

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