Ela estava sentada de frente para mim um pouco atônita. A pior coisa que poderia acontecer agora era ver Daphne assustada por minha causa. Não ousei encará-la por um instante até estar completamente calmo, fitei a toalha de mesa e respirei fundo.
— Perdão por agir dessa forma e por tê-la assustado – descupei-me já mais sereno.
— Está tudo bem querido – diz ela, deixando a tensão em seus ombros se desfazer. — É uma situação difícil de se lidar. Sua atitude é compreensível mas não pense muito sobre isso, o seu pai e os outros estão trabalhando para resolver esses incidentes.
Seu semblante materno carregava a mesma tranquilidade que eu vi nos últimos anos. A calma dela me deixava um pouco receoso, mas sorri indo para o lado da mesa em que ela estava.
— Vou dar uma volta – beijei a sua testa e virei para sair.
— Você não vai para o colégio hoje?
Esse era um assunto que eu queria evitar se pudesse, mas em algum momento teria que lhe lembrar disso.
— Não. Eles nos dispensaram essa semana para que pudessem planejar melhor o encerramento das aulas e o alistamento dos garotos no PGRP – expliquei sem muito ânimo, já que praticamente éramos obrigados a participar do programa.
— É mesmo. Em breve você fará 16 anos e estará entre os recrutados – Daphne levou a mão ao peito como se seu coração estivesse prestes a partir.
— São poucos os que passam nos testes, talvez eu acabe me tornando apenas um guarda e poderei vir visitá-los – tentei tranquilizá-la.
Eu tinha certeza de que isso não passava de uma quimera. O mais provável é que eu acabasse entrando para o grupo do Pentágono, os cinco reservas a presidente. Meu desempenho na escola sempre foi notado pelos secretários dos Distritais e eu sabia que estavam de olho em mim. Mas o meu medo era que chegassem perto demais e descobrissem a minha verdadeira origem.
— Tem razão. Eles costumam dar um ensino rígido aos selecionados durante o processo – comentou Daphne.
Apesar de seu rosto permanecer inabalável, ela também parecia não confiar muito em suas palavras.
— Sim. De qualquer maneira ainda tem tempo até isso acontecer então – colocando a mão em sua cabeça sacudi um pouco com cuidado para não bagunçar o seu penteado. — , não pense em coisas desnecessárias.
Minha mãe sorriu e recostou as costas na cadeira, cedendo. De repente algo veio a mente dela.
— Oh, é mesmo. Seu pai disse que esse ano as garotas poderão se alistar.
— Parece que sim, mas somente para o treinamento de guardas – digo.
Não era muito sensato da parte deles confiar as nossas vidas à elas e não terem coragem de encaregá-las de governar o país. Elas certamente seriam ótimas presidentes também.
— Bem, eu irei até a capital com Carter. Ele ouviu dizer que inaugurou uma nova confeitaria por lá e como ele é louco por doces, combinamos de ir juntos.
— Pelo visto os gostos dele não mudaram muito – sua expressão mais animada era reconfortante.
— Voltarei antes do anoitecer.
Caminhei em direção a porta e o estalido que fez contra o batente ao fechar fez meu corpo retesar me detendo ali por um momento.
— Está tudo bem senhor Thomas? – quis saber o ancião que cuidava da estrebaria.
— Sim, está – forcei um sorriso para confirmar o que eu disse.
— O senhor vai sair? Deseja que eu prepare um cavalo?
— Sim, traga um e... por favor me chame de Thomas. Somente Thomas, não precisa de tanta formalidade comigo – pedi em súplica.
— Claro senhor, com licença.
Revirei os olhos em derrota. Talvez esse fosse um hábito difícil de mudar. Olhei para o jardim onde alguns guardas faziam a ronda matinal, a forma descontraída com que conversavam fez a minha apreensão desaparecer.
— Aqui está senhor – diz me entregando as rédeas.
— Obrigado.
Com um salto montei no cavalo e dei início ao galope em direção a saída, os guardas abriram os portões me dando passagem. Tomei o caminho para a capital onde Carter me aguardava. Diferente das outras províncias a nossa era mais próxima da capital assim como a de Carter. E também era onde ficava a Torre Distrital, o lugar mais vigiado de todo Distrit Ind, mas não significava ser o mais seguro.
A paisagem aos poucos foi mudando e o vilarejo da nossa província ficou para trás. O resto do trajeto era só estrada de pedra e as árvores que a cercavam. Quando cheguei desacelerei o cavalo e o vi acenando para mim.
— Se demorasse mais um segundo eu entraria sozinho – reclamou quando desci do cavalo.
— Duvido que conseguisse aproveitar a comida sem minha companhia.
— É óbvio que conseguiria – retrucou emburrado.
— Então porque se dar ao trabalho de me convidar? – provoquei cruzando os braços.
— Tsc. Você não passa de um convencido – diz ele entrando e eu o sigo.
A garçonete com um arco de orelhas de gatinho na cabeça nos recebe e conduz até a mesa. E eu percebo que os funcionários são todas garotas com tiaras de orelhas de algum animal. Uma confeitaria temática. Os olhos dele brilham como se estivesse em um parque de diversões, agora entendi a sua insistência para conhecermos o lugar.
— O que os senhores vão querer? – pergunta a garçonete docemente.
— Eu vou querer uma porção de brioche e um café descafeinado. E você Mazinho? – pergunto sem o olhar.
Não ouso levantar a cabeça quando sinto ele me lançar um olhar fulminante e finjo me distrair com as letras do cardápio. Sei o que fiz e não posso voltar atrás.
— Uma fatia de banoffee pie e uma vitamina verde – responde por entre os dentes.
A garota recolheu os cardápios e cobriu o rosto com eles para esconder um sorriso enquanto se afastava.
— Maxon. M-A-X-O-N. Maxon!! – protestou ele, se esforçando para falar baixo.
Ao ouvir isso, meu sorriso é imediato e real.
— Está bem. Está bem – digo com as mãos para cima, me rendendo. — Eu me esqueci. Desculpe Maxon Carter.
— Você vive me chamando assim desde que nos conhecemos e sinceramente não tenho problema algum com isso. Mas é diferente na frente de outras pessoas e ela era uma garota, Thom. Uma garota! – diz ele corado, cobrindo o rosto com as mãos.
— Entendi. Eu já me desculpei, certo? – falei tentando soar sincero e não rir do desespero dele.
— Você acabou com a minha reputação. Agora acho que só me resta casar com você – brincou ele e eu ri.
— Sinto muito decepcioná-lo mais em breve irei me alistar – retruco tentando manter a voz regular.
Ele me encarou com um sorriso vacilante e pude perceber quando um arrepio percorreu o seu corpo, ele tremeu um pouco. Não havia como evitar ou contrariar esse futuro mas também não queríamos aceitar, porém precisávamos. Max apoiou os cotovelos na mesa e pousou o rosto sobre as mãos unidas me encarando.
— Pare de me olhar assim e tire essa ideia da cabeça. Eu não irei me casar com você – afirmo presunçoso.
Ele sorri e balança a cabeça desconsiderando o comentário.
— Acho que deveria cortar o seu cabelo para o PGRP – sugere.
Sua expressão não deixa claro se está brincando ou falando sério mas então vejo sua boca se curvar num sorriso.
— E o que sugere, um corte como o seu? – brinquei.
O cabelo dele era mais curto e repicado, algumas mechas cobriam a sua testa e não passavam da altura da nuca. Bem mais prático do que eu meu.
— Se quiser tentar. Mas não garanto que ficará tão bom em você – diz com ar arrogante e não consigo segurar uma risada.
— Por falar nisso como está o clima em sua casa?
— Ah, nem comente – resmungo enterrando o rosto nas mãos. — Só contei para Daphne hoje e imagino que ela deva estar uma pilha de nervos.
— Daphne? – questiona ele, me observando com atenção com os olhos cor de mel.
— Minha mãe – corrigi ao perceber ao que ele se referia. Na minha mente eu a chamava assim com frequência, acabei deixando escapar.
— Thomas, nunca mais repita isso. Nem mesmo na minha frente, alguém pode escutar – aconsehou Max e eu sabia que estava certo, seria um problema se alguém descobrisse.
— Tudo bem. Ficarei mais atento – assenti.
A garçonete voltou com nossos pedidos e deixou sobre a mesa. Ao entregar o de Max ela sorriu para ele. Eu apertei os lábios para não rir e Max me chutou por baixo da mesa percebendo.
Estar com ele em um clima tão descontraído quase me fazia esquecer dos ataques às residências provinciais e do recrutamento prestes a começar. Seriam os seis anos mais longos da minha vida, ao menos Max estaria comigo para me lembrar de que a minha origem deveria ser mantida no passado.
Meu pai adotivo era Chefe Provincial assim como o pai de Carter, que se conheciam desde criança. A amizade entre eles fez com que nos aproximássemos tornando-o meu melhor amigo. A família de Max eram os únicos que sabiam de quem eu realmente era filho e para todos os efeitos Daphne e Ernani sempre foram os meus pais de sangue. A explicação que deram para eu aparecer em público apenas dez anos depois foi a de que minha saúde era frágil. Por sorte ninguém contrariou dado o histórico de gestações de Daphne. Essa era uma mentira que todos precisavam continuar acreditando ser verdade, incluindo eu mesmo ou tudo estaria perdido.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Diário do Presidente
Mysterie / ThrillerEm Distrit Ind a sucessão de presidentes não tem fim. Por trás de cada morte existe um mistério, ou melhor, um segredo que os Distritais não conseguem desvendar. Após a repentina morte de Grayth Luster, o último presidente, Thomas assume o seu lugar...