Depois de ser expulsa de casa, tudo o que a minha mãe tinha era algumas economias que não durariam até o final do mês. O meu pai não era um camponês tampouco tinha terras ou bens mas conseguiu um casebre em uma viela mal iluminada. Os moradores de lá não se importavam com quem éramos, apenas viviam as suas próprias vidas ou tentavam sobreviver a ela da melhor maneira que podiam. Todos estavam na mesma situação e trabalhavam para pagar o senhorio, dono daquelas propriedades.
Meu pai trabalhava em algumas lavouras e se esforçava ao máximo para compensar a mim e minha mãe pela miséria a que estávamos destinados, enquanto isso minha mãe lavava roupas para fora. No entanto, eu nunca a vi reclamar ou se arrepender de ter escolhido ficar com ele. Ela o amava de todo o seu coração e eu era a personificação do sentimento entre eles.
A praga no campo fez meu pai entrar em contato com alguns pesticidas venenosos e ele faleceu. Mesmo sem forças para falar ele ainda sorria me fazendo acreditar que tudo ficaria bem. Foi difícil para ela manter a casa com o seu trabalho e acabamos indo morar na rua, a família dela não quis nos receber. A sua saúde foi ficando cada vez mais frágil e seus dedos cheios de calos não conseguiam mais lavar um tecido sequer. Dois meses depois minha mãe também morreu. Não havia mais com quem contar, eu estava sozinho agora mas nada apagaria os dez anos que passei com eles. Pensei. Deitando no chão frio me cobri com os lençóis velhos e adormeci, a neve parecia uma cama fofinha apesar de gélida.
Quando abri os olhos percebi que não estava mais naquela rua estreita e meu telhado emprestado havia sumido. Lustres, flores, móveis luxuosos e quadros cercavam-me naquele estranho lugar em que acordara. Era a casa de um camponês? Não. Nenhum camponês teria tanto dinheiro assim, meus olhos se arregalaram em descrença. Era a residência de um Chefe Provincial! Nunca entrei em uma mas já tinha visto várias quando acompanhava a minha mãe na entrega das roupas. Mas o que eu fazia ali? Mesmo morando na rua nunca havia roubado e não lembrava de ter feito alguma coisa errada para pedir clemência a quem quer que aparecesse.
Permaneci sentado e ouvi passos vindos do outro lado da grande porta dourada que ficava ao fundo da sala. Fiquei de pé me preparando para pedir desculpas por estar ali. O homem que surgiu era alto e sua roupas pomposa marcava seus músculos por baixo dela. Quase deixei passar despercebido o jovem de estatura mediana e esguio, igualmente bem vestido com quem conversava distraído. Ambos caminhavam na direção em que eu estava e pelo modo como se vestiam com certeza era a casa de um Chefe Provincial. Talvez devesse fugir já que ainda não haviam notado a minha presença, mas para onde ficava a saída? Quando dei o primeiro passo para o lado oposto esbarrei na mesinha que estava no centro da sala, fazendo com que o vaso em cima dela caísse no chão me entregando.
Os dois que antes conversavam alegremente ficaram calados, provavelmente encarando as minhas costas. Os cacos espalhados entre a mesinha e o sofá foram o suficiente para eu querer não olhar para trás. Gelei. O silêncio tomou conta do ambiente e então foi interrompida por uma risada alta obrigando-me a virar, surpreso.
— Você acordou! – exclamou alto demais para o curto espaço que nos separava agora, o que fez eu encolher meus ombros.
— E-eu... sinto muito. Eu não sei como vim parar em sua residência, peço que me perdoe. – disse a única coisa que sabia, esperando que ele acreditasse.
— Perdoar você? – perguntou ele me parecendo tão confuso quanto eu.
O jovem ao seu lado olhava para mim atentamente como se estivesse decifrando o que eu queria dizer.
— Sim. Perdão pelo vaso que quebrei, e por não saber explicar como cheguei aqui. Não me castigue por isso senhor – concluí ajoalhando-me demonstrando o meu arrependimento.
— Como posso perdoá-lo se fui eu quem o trouxe até aqui?
— O que disse senhor? – levantei a cabeça para encará-lo.
— Claus ajude-o a se levantar.
— Claro senhor – respondeu o jovem que me estendeu a mão no mesmo instante.
Tudo parecia estar errado. Não tinha como eu estar ali por vontade dele. O que ele poderia querer de mim, um órfão e pobre? Os roncos da minha barriga não me deixavam pensar direito.
— Traga alguma coisa para ele comer – pediu o homem, que eu ainda não sabia o nome, a Claus que se retirou da sala rapidamente. E voltou a fixar os olhos em mim. — Sente-se por favor.
Sentamos no mesmo sofá mas mantive uma certa distância entre nós, já que eu estava todo sujo e fedorento.
— Como você se chama?
— Tho-thomas – gaguejei um pouco nervoso, ninguém nunca havia perguntado o meu nome.
— Thomas – repetiu ele. — Você não carrega um sobrenome?
— Willis. Thomas Willis – era o sobrenome do meu pai, um rebelde desertor.
— Entendo – ele olhou para o chão um pouco decepcionado.
— Desculpe, mas o senhor havia dito que me trouxe para sua casa? – indaguei sobre o que me intrigava.
— Sim! – respondeu com a mesma animação do início da conversa.
— Aqui está senhor – disse Claus entrando na sala carregando uma bandeja de prata com pães, bolo, frutas e um copo de suco. Meus olhos brilharam.
— Obrigado – disse a Claus e olhando para mim completou. — Coma enquanto eu lhe explico.
Ele falava ternamente e eu obedeci mordendo um pedaço do pão com calma. A nossa diferença de educação era visível apesar de não comer há dias não queria parecer mal-educado na frente deles. Olhando pela janela retomou a conversa em um tom mais contido como se estivesse prestes me contar um segredo.
— Minha esposa sempre quis ter um filho. Um herdeiro para cuidar, mimar e principalmente amar. E isso se tornou o meu desejo também.
Ele fez uma pausa ponderando, suas costas estavam arqueadas como se ainda não tivesse chegado na pior parte da história. Claus parecia sofrer com tudo aquilo também. Encontrando a sua voz o homem prosseguiu.
— Foram muitas tentativas, porém ela sempre acabava perdendo o bebê. Os médicos disseram que ela não poderia mais engravidar, foi difícil para mim na época e para ela foi insuportável – falou com a voz levemente embargada.
— A Daphne quase não comia, não queria sair, não queria me ver. Era como se tivesse perdido a vontade de continuar vivendo – lágrimas recorreram pelo seu rosto e Claus lhe ofereceu um lenço de seda.
— Tente se acalmar senhor – pediu controlando as próprias lágrimas.
Não fazia ideia de quanto tempo Claus trabalhava para ele mas estava claro de que eram muito próximos.
— Eu estou bem – disse nitidamente não estando e continuou. — Nós chegamos a pensar em adotar uma criança mas com a remuneração que as famílias recebiam pelo PGRP ninguém abriria mão de seus filhos. Haviam outros métodos mas nunca concordaríamos.
Ele parece estar mais calmo, ele me olha e arque-a uma sobrancelha.
— Não nos foi possível adotar, até esse momento – seus olhos voltaram a ficar marejados.
Sentado no braço da poltrona, Claus parecia compartilhar dos mesmos sentimentos pois algumas lágrimas pendiam de seus cílios. Para mim, era muita informação de uma vez só. Não sabia o que pensar ou dizer, então permaneci calado. Como se adivinhasse o que se passava em minha cabeça, ele pousou a mão sobre o meu ombro e voltou a falar.
— Sei que está confuso. Não é um assunto fácil para alguém da sua idade entender, mas peço que nos escute atentamente – disse e eu concordei.
— Em nosso retorno de uma reunião na Torre Distrital, o cocheiro entrou em uma rua errada. Quando percebemos estávamos na parte mais pobre da cidade, demoramos um pouco para descobrir como sair. O lugar tinha uma beleza peculiar, mal-iluminada pelos raios de sol, quase como se pedisse para não ser notada – a voz de Claus vacilava às vezes.
— Foi por entre esses feixes de luz que o vimos. Tão pequeno. Tão sozinho.
— O desejo dos meus senhores era ter um filho. Um filho que ele viu em meio aos lençóis cheios de buracos tentando sobreviver ao frio daquela viela – falou Claus.
Ele aparentava ser uma pessoa controlada e fora a primeira vez em nossa conversa que o vira tão estarrecido. Não nos conhecíamos até agora, mas ele realmente se importava comigo.
— Não sabíamos onde estavam os seus pais ou se os tinha. Só havia você ali debaixo da marquise, decidimos por fim trazê-lo conosco. Faz cinco horas que está aqui – disse o homem que eu ainda não conhecia o nome.
— Meus pais morreram há pouco tempo. Perder eles me fez perder tudo o que eu tinha. E tive que conviver com o frio, a escassez de comida, a mal remuneração por ser um órfão. Eu me via sozinho, nem mesmo um lar eu tinha mais – desabafei sentindo o meu peito doer a cada palavra.
— Então você não tem mais ninguém? – quis confirmar Claus e eu neguei com a cabeça.
— Antes de qualquer coisa eu preciso contar que... – falei hesitante mas não podia esconder isso deles. — eu sou filho de um rebelde de fora da fronteira com uma camponesa do Distrit Ind.
O rosto dele se contorceu um pouco, talvez preocupado e apreensivo mas não parecia surpreso. De qualquer forma provavelmente não me queria mais ali.
— Já desconfiávamos disso desde que o encontramos – confessou ele sem nenhum desprezo ou julgamento.
— Em outras palavras, nós não vemos problemas com a relação dos seus pais. Todos tem o seu passado. O senhor Ernani deseja poder criá-lo e reconhecê-lo como o seu herdeiro. Ele quer que você faça parte da família Bozasker – Claus me olhava com tanta carinho que fez meu coração se aquecer.
— Agora você não está mais sozinho. Você tem a nós e essa será a sua casa, se assim desejar – disse Ernani esperançoso.
Sentia a minha cabeça girar com tudo o que havia sido dito. Encarei a bandeja de prata com o copo e os pratos vazios sobre a mesinha, aconteceu tudo tão rápido. A morte dos meus pais. O meu encontro com eles, e o pedido que o homem à minha frente fazia para ser seu filho. O que eu deveria fazer? O que eu deveria responder? Certamente não sobreviveria muito tempo na rua, lembrei dos meus pais e então...
— Sim. Eu aceito ser o seu herdeiro – respondi tendo a certeza de que estava fazendo a escolha certa.
Meu corpo franzino quase foi quebrado pelo abraço forte e apertado, porém afetuoso daquele que me acolheu me dando um novo lar. Claus carregava um sorriso que era um misto de emoção e felicidade, as lágrimas que antes continha agora escorriam livremente pelo seu rosto. A reação deles me fez sentir em casa e eu estava.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Diário do Presidente
Mistério / SuspenseEm Distrit Ind a sucessão de presidentes não tem fim. Por trás de cada morte existe um mistério, ou melhor, um segredo que os Distritais não conseguem desvendar. Após a repentina morte de Grayth Luster, o último presidente, Thomas assume o seu lugar...