Capítulo 2

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   Sentia o acariciar de seus dedos longos e delicados nas minhas bochechas, isso me deixava ainda mais relutante a acordar. Aquele carinho que aquecia o meu coração e me despertava todas as manhãs faziam eu me sentir o mesmo da época que a conheci. Era como se os cinco anos e meio não tivessem passado. Abri os olhos e ao ver o sorriso em seu rosto lembrei de sua felicidade quando Ernani lhe contou que eu seria o seu filho. Ela não me deixou dormir sozinho durante dois meses inteiros. Lia histórias e me embrulhava todas as noites. Daphne disse que não queria substituir a minha mãe e com o seu amor materno ela conquistou um espaço só dela em meu coração.
   — Bom dia querido – disse ela colocando uma mecha do meu cabelo para trás da orelha.
   — Bom dia mãe. Tão cedo e já tão bonita – falei em tom provocativo sabendo que ela ficaria envergonhada.
   Daphne tinha a pele rosada naturalmente e a cor de seus cabelos pareciam chocolates derretidos. Era estonteante e tímida mas sorria com facilidade. Nem conseguia imaginar como foram os dias de tristeza que enfrentou antes de eu chegar aqui.
   — Pare Thomas – me repreendeu com a face corada. Ela era péssima em receber elogios e tinha um jeito tão meigo para recusá-los. — Está se tornando um ótimo galanteador assim como o seu pai.
   — Digamos que o modelo dele é meloso demais para mim mais ainda é uma peça fundamental de aprendizado – brinquei e ela sorriu.
   — Não me enrole. Apronte-se logo para o café eu estarei lhe esperando lá embaixo – disse me dando um beijo na testa e saiu.
   Levantei cobrindo o bocejo com a mão e fui até o banheiro. A água morna escorria pelo o meu corpo lavando qualquer resquício de sono. Diante do guarda-roupa escolhi uma camisa branca de algodão e uma outra social para usar por cima, vesti uma calça azul-marinho quase justa de linho. Calcei botas pretas e pus a casaca de cor verde musgo com detalhes em dourado e azul. Visualizei o reflexo no espelho que se distanciava da minha imagem ao pisar naquela casa pela primeira vez.
   O garoto magricela, pobre, de trajes esfarrapados sem nenhuma perspectiva de vida agora dava lugar a um jovem herdeiro. As roupas de tecidos caros destacavam cada músculo que meu corpo adquiriu com os treinos. Nada disso compensava a minha falta de jeito em arrumar o meu cabelo. Passei a mão por entre os fios deixando ainda mais desgrenhado. Suspirei um pouco frustrado comigo mesmo por não conseguir fazer algo tão simples.
   Em minha distração não notei a porta se abrir de repente, quando ouvi o barulho dos passos dei um pulo para trás sobressaltado empunhando a espada que recostava-se no espelho. A expressão em seu rosto entregava que também fora surpreendido mas então relaxou e sorriu desfazendo o clima tenso.
   — Fico feliz em ver você tão disposto logo cedo – disse Claus.
   — Perdão. Com tantos ataques às residências provinciais acabei ficando receoso – senti um aperto no peito só de pensar nessa possibilidade e soltei a espada sobre a cama.
   — Entendo a sua preocupação, mas estamos seguros aqui – confortou-me se aproximando. — Seu pai se certificou de reforçar toda a segurança ao redor da casa.
   — Certo – deixei o alívio em saber disso tomar conta do meu corpo e sentei na cama ao lado de minha espada.
   — Venha, darei um jeito no seu cabelo – disse Claus apontando para o banco estofado que ficava diante de uma mesa estreita com espelhos.
   Ele passou levemente a mão pela minha testa jogando para trás as madeixas que cobriam os meus olhos unindo as outras. Claus penteava com a mesma suavidade de sempre, só que agora o meu cabelo azul-ferrete tinha o comprimento que dava no meio de minhas costas. Ele amarrou o meu cabelo em um rabo de cavalo e as mechas mais curtas soltaram do penteado. Ignorando-as, Claus deixou elas ali e como toque final as alinhou nas laterais do meu rosto. Estava perfeito, muito melhor do que qualquer coisa que eu pudesse ter feito.
  — Terminei aqui – falou.
   Olhei o meu reflexo e vi o cabelo perfeitamente bem penteado e pensei "É assim que um verdadeiro herdeiro se apresenta." Eu definitivamente estava longe disso. Sorri comigo mesmo. O breve momento de distração quase me fez esquecer dos ataques e meus ombros voltaram a ficar tensos. Claus percebeu.
   — Relaxe senhor Thom. Estamos trabalhando para resolvermos os incidentes das invasões.
   — Pensei já ter dito a você para deixarmos de lado essas formalidades – comentei semicerrando os olhos fingindo irritação, apesar de estar perto disso.
   — É força do hábito – justificou ele.
   — Fico feliz em saber que só eu o considero como um irmão – disse, apelando para a chantagem.
  Ele era apenas doze anos mais velho que eu e foi o primeiro amigo que tive. Claus não só era o mordomo da casa, como também o conselheiro de Ernani e nas horas vagas agia sem perceber como o meu irmão mais velho. Ele ficava sensível ao tema pois assim como eu não tinha mais pais, ambos fomos acolhidos pela família Bozasker.
   — É sempre muito apelativo Thomas, sua facilidade em barganhar me impressiona – provocou tentando disfarçar a comoção em sua voz e os olhos cheios de lágrimas.
   Adorava a facilidade com que ele se rendia as minhas provocações. Um legítimo irmão mais velho.
   — Eu ando aprendendo algumas coisas novas – falei lembrando da conversa com Daphne mais cedo. Levando o dedo indicador a boca simulei pensar. — Acho que o papai tem certa influência sobre isso, talvez devesse me afastar dele um pouco.
   Claus sabia que eu não estava falando sério e riu. Provavelmente imaginando a reação de Ernani com o afastamento, já que era tão carinhoso.
   — É melhor nós descermos logo, sua mãe o aguarda para o café.
   — Como queira senhor Claus Fricks – respondi batendo continência e ele fez cara de superior contribuindo à minha atuação.
   O seu ar de arrogante não durou muito tempo, envergonhado ele riu e me empurrou para fora do quarto.
   Ao sair, caminhamos pelo corredor que levava até a escadaria principal. Os raios de luz que entravam pelos vidros da janela lateral refletiu em meu rosto que cobri parcialmente com uma das mãos. Por entre os dedos, olhei em direção ao jardim notei o movimento dos guardas que conversavam entre si. Deveria parar de me preocupar, Claus tinha razão, a segurança fora redobrada muitos deles eu nem conhecia. Chegamos ao último degrau da escadaria e então minhas preocupações desapareceram. Minha mãe estava sentada à mesa.
   — Você está realmente muito linda – elogiei. 
   Ela usava um vestido de alça longo de cor amarelo claro, que realçava a sua cintura e seu cabelo totalmente preso em um coque favorecia a sua beleza.
   — Obrigada – agradeceu corando. — Você também está meu filho. Claus sabe o que faz.
   Me perguntei se era tão óbvio que eu não conseguisse nem arrumar o meu cabelo.
   — Nos acompanha? – perguntou ela a Claus.
   — Desculpe senhora, mas não poderei. Prometi encontrar o senhor Ernani assim que organizasse as coisas por aqui.
   — Certo. Não o faça esperar mais então, ele deve estar a sua espera.
   Claus fez um aceno com a cabeça e saiu,  mas não antes de dar um soquinho no meu ombro e eu sorri para ele.
   — Ele está na Torre? – indaguei.
   — Sim, ele recebeu uma convocação.
   — E do que se trata? – quis saber.
   No breve silêncio que se fez percebi que o assunto era delicado.
   — Os Distritais chamaram todos os Chefes Provinciais para uma reunião com o presidente – seu olhar distante enquanto falava parecia preocupado.
   — Para falar sobre a Resistência?
   — Esse talvez seja um dos assuntos também. Ouvi o seu pai comentar com Claus que nesse encontro eles discutirão sobre os ataques às residências provinciais e as mortes misteriosas dos últimos presidentes. Tudo leva a crer que sejam ações de um ou mais grupos de rebeldes. – concluiu ela apreensiva.
   Um arrepio percorreu o meu corpo ao ouvir aquilo. O quão longe eles tinham ido? Os últimos presidentes haviam sido assassinados? Meu estômago se embrulhou e pude sentir o café da manhã refazendo o caminho de volta me fazendo ter ânsia.
   — Não se preocupe, tudo irá se resolver – disse minha mãe calmamente.
   O que me fez lembrar da conversa que tivera com Claus naquela manhã. Teria mesmo como eu não me preocupar? Eles estavam escondendo algo a mais de mim? Estávamos realmente seguros?
   Incapaz de dizer uma só palavra concordei com a cabeça. Meus punhos se fecharam socando a mesa enquanto levantava abruptamente empurrando a cadeira para trás. De esguelha vi Daphne se sobressaltar. Fiquei com raiva de mim mesmo por me deixar dominar por esse sentimento que quase me fez esquecer de quem eu de fato era filho. Fechei os olhos e suspirei.

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