Era a última semana antes de começar as aulas e em período de adaptação foi o suficiente para que conhecêssemos uns aos outros. Dos oitenta alunos, trinta eram garotas, divididas em duas turmas de quinze alunas em cada e outras duas turmas com a mesma quantidade de garotos e uma única com vinte deles. Isso fazia com que nos tornássemos próximos bem rápido e era um meio de evitar brigas futuras também. Quem se envolvesse em qualquer confusão por menor que fosse estava automaticamente expulso do programa. E os nossos jovens tutores tinham a obrigação de impedir que isso acontecesse, afinal a promoção de cargo deles dependia disso.
Os filhos dos Distritais não iam à escola pois tinham recursos para estudar por conta própria. Eles se tornavam os tutores dos alunos que entravam no PGRP, enquanto as filhas dos Distritais recebiam pela primeira vez a função de cuidar das garotas que se tornariam guardas.
— Aquele garoto não parece ser um pouco mais velho que você? – perguntei a Keine.
— E ele é. Muitos dos tutores que vocês irão ver será mais velho do que eu ou de algumas das outras tutoras. Os Distritais não tem tantos filhos assim para cada dois alunos – diz ele sorrindo. — Aquele é um dos conselheiros dos Distritais, tem mais outros como ele por aqui também.
— Entendi.
O refeitório era o único lugar onde encontrávamos com as garotas e sempre tinham uns dois guardas que faziam a ronda. E não tinha regras contra sentarmos juntos, então os que se conheciam de suas províncias acabavam dividindo a mesma mesa. E Loene sorria timidamente perto de uma das garotas de quem era tutora. Algo na expressão dela mostrava um certo desconforto e tristeza. Ela estava usando um vestido branco, com fios dourados e vermelho entremeados. Tão...
Senti os olhos de Max cravados em mim que percebeu a direção do meu olhar e eu desviei, o fazendo erguer as sobrancelhas maliciosamente.
— Ela é linda e pelo jeito você está começando a gostar dela, não é? Mas, sério Thomas, não dá. Você sabe que eu te apoiaria se ela não representasse uma ameaça – sussurrou para que Keine não escutasse e eu assenti.
Quando terminamos o almoço, Keine nos levou para dar uma volta. Ele parecia empolgado com o fato de poder estar no comando de algo.
— Estão vendo aquele prédio ali? – Max e eu balançamos a cabeça. — É onde terão os chamados Eventos Sociais de Elite nas tardes de sexta. Um bom presidente precisa também ser um bom anfitrião e saber se portar diante de seus convidados.
Depois de nos mostrar o jardim, a sala de jogos onde podíamos nos distrair no fim de semana e a sala de treinamento de combates físicos nós voltamos para o quarto e jogamos cartas. Keine dormia no mesmo quarto que Max e eu, o que era bom pois nós três éramos filhos únicos e tínhamos a mesma idade.
O céu ficou nublado de repente e avisei que daria um passeio pelo jardim antes que começasse a chover. Keine queria ir junto mas Max protestava por uma revanche e ele cedeu ficando.
— Não demore a voltar. Eu não posso perder vocês de vista – pediu Keine.
— Não irei – assegurei e ele fechou a porta quando saí.
Os corredores estavam barulhentos embora estivessem vazios. Me perguntei se assim como os garotos do meu quarto os outros também se divertiam juntos. Do alto das escadas, olhei pela janela lateral e vi um banco de pedra perto de uma fonte sombreado pelo arvoredo que cercava o dormitório. Era o lugar perfeito para ficar sozinho.
Quando dobro a esquina do edifício passo por três garotos sentados e percebo que um deles me acompanha com o olhar.
— Vejam só quem está aqui, Thomas Bozasker. O herdeiro mais patético de todos os Chefes Provinciais – provocou o garoto ruivo se levantando.
— O que você quer? – não me dei ao trabalho de perguntar como ele sabia o meu nome, não deveria mais ser um segredo para a maioria.
Estava começando a ficar irritado com a provocação de alguém que nem conhecia. Eu não fazia o tipo encrenqueiro mas gostaria de retribuir o mesmo desaforo, no entanto não tinha ideia de quem era o garoto e o seu grupinho que parecia assustado. O reflexo do sol brilhou na lapela do garoto e eu pude ler o nome da insígnia das Residências Provinciais. Então a voz dele já não me era mais estranha. Era Brian, o filho de um dos Chefes Provinciais que elogiava o meu pai pelo meu desempenho e isso gerou uma competição unilateral. Os outros dois eu não conhecia, eles não estavam entre os dez alunos que estudavam na nossa escola. Provavelmente eram camponeses.
— O aluno perfeito em todas as matérias da escola, capaz de conquistar até a atenção dos Distritais e do tolo do Carter. Finalmente lhe encontrei sozinho e posso provar que sou melhor do que um herdeiro fraco que surgiu das sombras depois de dez anos. A vergonha do sobrenome Bozasker – diz ele empurrando o meu ombro com força.
Não consigo controlar o meu impulso e o puxo pelo blazer e ele faz o mesmo. Eu não deveria ser visto como influente, ao menos não queria. Estar sob os holofotes não seria bom para mim. Mesmo assim as palavras me irritam e meus punhos se fecham, mas antes que eu possa erguer a mão fechada para socar a cara do garoto à minha frente, uma voz feminina vinda de trás de mim me faz estacar. Loene estava parada do meu lado e não vi de onde havia saído.
— O que está acontecendo?
Brian me largou no mesmo instante. Fico tão surpreso com a aparição dela que, por um momento, só fico olhando para ela.
— Foi ele quem iniciou a discussão – mentiu, rapidamente me acusando.
— Eu ouvi bem quando começou e sei que não foi ele. Brigas são proibidas dentro desses muros. Já deveriam saber disso – diz Loene se esforçando para manter a voz firme.
— Sinto muito senhorita pelo que falei – o seu tom denotava um arrependimento quase genuíno. — Peço que não conte aos superiores o que ocorreu aqui, por favor – implorou o garoto, o que fazia a sua valentia de alguns segundos atrás ser ridícula. E eu quase senti pena dele.
— Eu não direi nada se seguirem as regras, apenas deixem o garoto em paz e não voltem a causar confusão – garante ela com a mão trêmula que escondeu no tecido do vestido.
Eu estava grato por não ter tido que agir, porém a minha vontade era dizer à ela que não precisava ter se intrometido mas isso seria indelicado demais. E talvez tenha sido melhor a intervenção dela. Eles concordaram e com um gesto de mão ela indicou para que nos deixassem a sós. Quando os garotos sumiram a postura dela se desfez.
— Ah. Como isso é difícil – desabafou Loene, inspirando e expirando.
— A senhorita está bem?
— Aaahh – gritou ela, dando uns passinhos para o lado. A minha salvadora parecia ter esquecido que eu ainda estava lá.
Loene cobriu a própria boca com as mãos e virou de costas para mim, envergonhada. Era tão pequena, tão fofa e corajosa e... Não! O que afinal de contas eu estava pensando? Eu não podia me apaixonar por ela, não por ela.
Loene se recuperou antes que eu pudesse conseguir sair dali e voltou a me encarar. Nossos olhares se encontraram e algo perigoso faiscou. Os seus olhos verde esmeralda estavam fixos nos meus azuis e ela sustentou o olhar enquanto eu desviei. Seria muito difícil ignorar os meus sentimentos por Loene se continuasse olhando para ela daquele jeito.
— Acho que ele não irá mais incomodá-lo – ela tinha uma voz doce e suave.
— Obrigado pelo o que fez, mas não me importo em ser expulso. Então da próxima vez não interfira – respondo com a voz mais seca e áspera que consigo.
Por alguns segundos ela ficou em choque e o seu sorriso havia desaparecido. Ela deu de ombros e ficou emburrada.
— T-tudo bem. Mas eu só estava cumprindo com o meu dever, não pense demais.
— Você disse que ouviu o início da discussão, mas não a vi por perto.
— Você se importa agora? – Loene estava magoada comigo e isso era bem claro.
— Não é que eu me importe, só estou curioso. Por acaso estava com os seus amigos? – palpito.
— Eu não tenho nenhum. Você acha que todo mundo quer ser amigo da filha de um Distrital influente?
Eu não respondi. Por isso ela parecia tão desconfortável com as outras garotas. Loene era solitária. E estava certa, o poder afastava algumas pessoas.
— Você é a primeira pessoa que não teve medo de ser ríspido comigo – confessou ela.
— Sinto muito.
— Sente? A ponto de se tornar o meu amigo? – indaga ela, me provocando.
— Acho que não tanto. Sermos amigos poderá ser problemático – falo, o que chega bem perto da verdade.
— De fato. Você me parece ser encrenca – diz ela se referindo à minha quase briga.
— Desculpe por ter sido rude.
O seu cabelo cor de lavanda parecia ser tão macio, eu queria poder tocá-la. O vestido verde tentava competir com o brilho de seus olhos. Eu não podia mais ficar tão perto dela.
— Eu preciso voltar ou o meu tutor acabará vindo atrás de mim – disse me distanciando mas meus pés insistiam em ficar.
A conversa com Loene despertava um frio no fundo de meu estômago. Quanto mais tempo conseguisse manter o meu passado encoberto, melhor para mim. Mas, só talvez, valesse a pena arriscar.
— Loene – gritei o seu nome antes de me dar conta de que isso era íntimo demais. Mas em breve não precisaríamos de formalidades — Se você quiser podemos ser amigos.
Ela não me respondeu, apenas sorriu e foi mais do que o suficiente.
Antes de tocar na maçaneta da porta do quarto, ela se abriu sozinha. E os dois me encararam com os braços cruzados na frente do corpo.
— Você demorou – comenta Max.
— Eu meio que perdi a noção da hora – respondi fechando a porta.
— Por causa da Loene? – perguntou Keine.
— Como você... – disse, me entregando.
— Eu disse que não posso perder vocês de vista por muito tempo. Nós saímos para ir atrás de você e encontramos um garoto que Max reconheceu.
— Brian reclamava algo sobre você. Nós o colocamos contra a parede e perguntamos se haviam se encontrado – completa Max.
— Vocês usaram a força para obrigar ele a falar?
Os dois se entreolharam.
— Não comente isso com ninguém. Brigas entre os alunos não são permitidas, mas não há regras sobre brigas entre um tutor e um aluno. Ainda assim foi muito irresponsável de minha parte – falou Keine.
— Vimos vocês próximos do jardim. Está realmente gostando dela? – quis saber Max e torci o nariz.
— Eu sei que recomendei você a ficar longe dela mas se gosta mesmo de Loene, acredito que você tenha chances com ela. E quanto ao pai dela, você terá que provar que merece a princesinha dele – aconselhou Keine.
— Eu não gosto dela e nem pretendo ter nada com Loene.
Eu sentei na cama e fechei os olhos. Devia ter soado tão óbvio que estava mentindo que Max se aproximou sentando ao meu lado e a colocou a mão nas minhas costas.
— Thomas, esquece o que eu falei mais cedo. Eu estou te dando o meu apoio agora. Nós três conseguiremos manter o seu segredo.
— Nós três? – questiono sem entender.
— Do que estão falando? – perguntou Keine.
— Suponho que possamos confiar nele.
O olhar de Keine ia de Max para mim confuso porém pacientemente esperando por uma explicação. Ele havia arrumado briga no corredor por causa de um garoto que conheceu há menos de um mês. Max tinha razão, Keine era alguém em que podíamos confiar.
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O Diário do Presidente
Misteri / ThrillerEm Distrit Ind a sucessão de presidentes não tem fim. Por trás de cada morte existe um mistério, ou melhor, um segredo que os Distritais não conseguem desvendar. Após a repentina morte de Grayth Luster, o último presidente, Thomas assume o seu lugar...