Capítulo 9

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O semblante do senhor Yervant ainda estava sério quando ele me pediu para sentar.
- Hoje seria o dia em que você poderia retornar para casa, nós sabemos disso. Mas depois da morte do último presidente, os Distritais ficaram mais atentos ao desempenho dos alunos aqui no programa - diz o senhor Yervant sem perceber que estou a ponto de lhe contar toda a verdade.
- E qual seria o motivo para eu não sair? - pergunto com a voz mais firme que consigo.
- Bem, você tem sido observado desde que entrou no PGRP, aliás, muito antes. Para ser sincero.
Os meus pulmões começaram a trabalhar desesperadamente mas pareciam não conseguir ar suficiente. O que isso significava?
- Eu não entendo. O que o senhor quer dizer?
- Pode me chamar apenas de Yervant.
Eu concordei com a cabeça e ele se levantou e caminhou para o meu lado.
- Thomas, você sempre foi um ótimo aluno e se destacava em todas as atividades, mas você tinha uma coisa que o diferenciava dos demais.
Meu coração disparava cada vez mais conforme Yervant ia falando. As janelas estavam abertas e só tinha nós dois na sala, porém o ar que circulava parecia não ser suficiente para encher os meus pulmões.
- Você está falando exatamente de que? - indaguei.
Não diria nada que me comprometesse até que ele falasse com todas as letras ao que estava se referindo.
- O que o torna diferente Thomas, é você ser filho de um Chefe Provincial. Você não pode sair porque os Distritais querem que se junte ao grupo do Pentágono. Se quiser é claro - conclui ele me deixando boquiaberto.
Eu repetia a mim mesmo para não chamar atenção. Para ser capaz de manter o meu passado encoberto, mas no final das contas eu nunca saí do campo de vista dos Distritais e conselheiros. Por alguma razão eles não chegaram perto o bastante para descobrirem a minha real origem. Mas se eu me afastasse agora, seria seguro assumir o lugar de Ernani? Como Chefe Provincial eu ainda correria alguns riscos. Fazer parte do Pentágono significava não ter que conviver com ninguém além dos outros garotos. Talvez não fosse má ideia permanecer escondido debaixo da asa do inimigo.
- Eu sou o único herdeiro dos Bozasker. Como ficaria a sucessão para Chefe Provincial?
- A respeito disso, nós discutimos e chegamos ao consenso de que como os seus pais consideram Claus Fricks como membro da família, ele poderia assumir essa responsabilidade - diz ele retornando ao outro lado da mesa.
- Entendo.
- Você é importante para o programa Thomas e não pode voltar para casa. Mas caso não deseje ficar, será livre para partir. E é claro que isso não afetará em nada o seu relacionamento com a minha filha. Me diga, qual a sua resposta?
Mas eu não sou quem você pensa. Tive vontade de responder. Se você soubesse quem eu era. De quem eu sou filho. Ainda me trataria com tanta cordialidade? Ainda daria a mão de sua filha para mim? E Loene no meio disso tudo. Quando ela descobrir a verdade, me odiará? Certamente vai pensar que eu a usei para me proteger. Não a culparia por pensar assim. Mas o que eu deveria fazer?
Os ombros de Yervant estavam retesados e uma brisa agradável fazia o seu cabelo balançar. Eu só conseguia ficar em silêncio sem conseguir chegar à uma conclusão. Max e Keine estavam do outro lado da porta me esperando, eu precisava dizer e rápido.
Eu ainda estava incerto mas não voltaria atrás. Meus olhos encontraram os de Yervant e disse o que esperava não me arrepender no futuro.
Max estava sentado com as costas apoiada contra as de Keine e não viu quando eu saí. Keine deu uns tapinhas na perna de Max para que ele olhasse na minha direção.
- Finalmente. Eu já acabei com todos os bombons que Keine tinha no bolso - falou Max me mostrando a mão cheia de embalagens vazias.
Eu abri um sorriso fraco. Nos conhecíamos há tanto tempo.
- Você demorou mesmo. Espero que tenha ocorrido tudo bem.
- Certo. Vamos, o cocheiro está esperando - disse Max agarrando o meu braço.
- Eu não vou voltar - retruquei me soltando.
A minha reação fez Max recuar. Eu sabia que essa conversa seria difícil e o encarar seria tão doloroso quanto vê-lo sair dali sozinho.
- Você o quê?
- Sinto muito Mazinho. Mas eu decidi ficar e entrar no Pentágono.
- V-você... eu... não pode... - gaguejava Max tentando processar o que eu falei. - Espera. Você disse Pentágono?
- Sim. Eu recebi uma proposta sobre a permanência e aceitei.
Olhei para Keine que não parecia nenhum pouco surpreso com a notícia.
- Você sabia, não é? - questionei.
Max se virou para ele mais perplexo com o fato dele saber do que com o que eu contara.
- Keine, desde quando? - a voz de Max saiu baixa e rouca.
Só havia nós três no corredor porém por mais abalado que estivesse Max não queria chorar, talvez não ali. Mas se a conversa continuasse com esse clima não demoraria muito para isso.
- Eu... soube um pouco depois da morte do antigo presidente. Entendam, eu queria ter dito, mas estava além de mim.
- A quase dois meses atrás? Pensei que fôssemos amigos. Quais segredos mais você guarda de nós? - indagava Max.
Ele me lançou um olhar triste e embaçado pelas lágrimas que se acumulavam no canto de seus olhos. Meu coração estava totalmente em teste naquela manhã. Ele batia o mais rápido que podia. Eu só torcia para que quando essa discussão acabasse ainda pudéssemos ser amigos. Que Max fosse capaz de me perdoar por não ter considerado tudo o que ele passou para me ajudar durante esses anos.
- O tempo que passamos juntos não foi o bastante para você pensar um pouco em mim? Você sabe o quão perigoso é para você ficar? - Max praticamente sussurrou a última parte.
As lágrimas rolavam copiosamente pela face de Max. Os seus sentimentos estavam transbordando e Keine nos conduziu para um corredor mais reservado, longe do escritório dos Distritais. Não podíamos ser vistos naquele estado. A nossa relação de três anos estava começando ruir.
- Mazinho... - comecei.
- Não me chame assim! - gritou ele. - Eu não sou mais o seu amigo. Eu não quero ser.
As palavras de alguém magoado doíam mais do que uma lâmina afiada. Quando eu não tinha ninguém, ele ficou do meu lado e me aceitou. Nós éramos iguais ao nosso modo. Max se tornou mais atento a cada palavra que eu dizia, para que nunca em hipótese eu cometesse qualquer erro. Mas dessa vez eu feri os sentimentos dele. Se ela não fosse capaz de me perdoar, Loene jamais seria.
- É tudo culpa minha. Se eu tivesse contado antes vocês não estariam nessa situação. Eu falhei como tutor e principalmente como amigo - desabafou Keine.
- Sim a culpa é sua. Toda sua. De vocês dois - gritou Max arquejando.
Keine e eu trocamos um olhar desolado. Não sabíamos o que fazer nem como acalmá-lo.
- Eu odeio vocês por me fazerem sentir assim. Por me fazerem gritar e parecer uma criança birrenta. Mas sobretudo por me fazerem sair do programa sozinho - concluiu ele secando as bochechas.
- O que disse? Isso significa que ainda somos amigos? - quis saber.
- Você não está chateado conosco?
- Estou! - rebateu Max. - É claro que estou. Mas o que tem haver ficar chateado com vocês e continuarmos sendo amigos? Eu posso fazer os dois ao mesmo tempo.
Podia é claro que podia. Max era sentimental demais e fiquei aliviado por ele não estar tão irritado quanto deveria. Talvez, só talvez, eu pudesse ter alguma esperança das coisas se resolverem assim com Loene. Eu não contaria nada à ela, mas não sei por quanto tempo mais aguentaria continuar escondendo isso dela.
- Não nos assuste dessa maneira. Por um instante quase acreditei ter estragado tudo entre a gente - repreendeu Keine, mais tranquilo.
- Como acha que vou sobreviver lá fora com os meus dois melhores amigos aqui dentro?
- Você pode ir em uma bomboniere. Deve ter vários novos estabelecimentos desses por aí - digo tentando animá-lo.
- Não tem graça ir sem companhia.
- Leve Claus com você. Sempre se deram tão bem. E serão só mais três anos.
- Eu irei esperar por vocês. Iremos todos juntos. Nesse período eu vou me preparar e me tornar um Chefe Provincial e podemos comemorar.
Max voltara ao seu estado normal. Eu podia sentir Keine mais relaxado agora.
- Eu tenho que ir. A minha província é um pouco distante daqui.
- Está bem. Entregue esta carta aos meus pais, nela eu explico sobre tudo o que aconteceu - peço lhe entregando o envelope.
- É claro. E, Keine, cuide de Thom para mim. Às vezes ele é meio descuidado e costuma falar o que não deve. Fique de olho nele - a voz de Max estava séria assim como a sua expressão.
- É o meu dever como tutor e minha obrigação como amigo. Não se preocupe eu o manterei na linha - assegurou Keine.
- Er... eu ainda estou aqui, não falem como se eu não estivesse presente - reclamo cruzando os braços.
- Sentirei a sua falta - disse ele me dando um abraço apertado.
- Eu também - respondi retribuindo o abraço.
- Cuide-se Thomas Bozasker. E não deixe que eles descubram sobre você.
- Tomarei cuidado - respondi e o observei ir embora.
Keine e eu retornamos para o nosso quarto e ele se ofereceu para desarrumar a minha mala. Olhei para a janela e vi uma pequena gota escorrer do lado de fora. O céu estava em um tom de cinza sufocante. Os pingos da chuva caíram lentamente antes de formarem as primeiras poças no chão. Deveriam ter setenta e cinco alunos no internato do programa, mas a minha permanência excedia esse número.
Nenhum Chefe Provincial chegou a se tornar reserva a presidente. E nenhum filho de rebelde com uma camponesa havia chegado tão longe. Me senti grato por simplesmente ainda estar vivo.

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