Da janela da sala principal da Torre eu observava os camponeses que se misturavam com o grupo que compunha a resistência. Do alto os rostos pareciam um grande borrão, mas pelos gritos de protesto sabia que estavam insatisfeitos. Eles ainda não haviam superado o fato dos Distritais terem encerrado as investigações sem uma conclusão. Mas as respostas que queriam nem os Distritais e conselheiros possuíam.
Quando Yervant apareceu na minha casa quatro semanas atrás eu ainda matinha a esperança de que aquilo não pudesse se tornar real. No fundo eu já sabia que não passava de uma boa quimera. Naquele mesmo dia eu fiz as malas e passei a morar na Torre Distrital. O ambiente era espaçoso demais, barulhento demais e eu não conseguia descansar mesmo que quisesse.
Os pequenos ruidos que Keine fazia enquanto arrumava alguns objetos na sala não deixavam eu me perder em pensamentos. Sacudi a cabeça afastando qualquer lembrança que me prendesse ao passado tranquilo que costumávamos ter.
Virei de costas para a janela e encarei Keine, o meu conselheiro e guarda pessoal. A sua nova farda não era um pouco parecida com a que Yervant e os demais Distritais usavam, só que sem a correntinha dourada que pendia de um lado ao outro do casaco.
Keine pegou alguns blocos de papel e colocou na caixa sobre a mesinha de centro e esfregou uma mão na outra para limpar o pó delas.
- O que é isso? - digo apontando para a caixa que ele acabara de soltar.
- Ah, são os pertences do antigo presidente.
- Será que posso dar uma olhada?
- Pode, claro. Acho que não tem problema. Eu irei verificar se você já pode ir cumprimentar a multidão - diz ele me deixando sozinho com a minha curiosidade.
No meio das coisas que Keine arrumou acho algumas medalhas, abotoaduras, alguns blocos de anotações e um alfinete de gravata. Um brilho no canto da caixa me chama mais atenção. Um cristal de quartzo âmbar-negro. A geométrica da pedra me deixa encantado, ela tem um formato que lembra um prisma perfeitamente polido. Uma mini torre de cinco centímetros, penso. Ergo contra a claridade vinda das janelas e as palavras em seu interior ficam visíveis.
- Toda lacuna deve ser preenchida - a minha voz sai como um sussurro.
A frase não me parece fazer sentido não importa quantas vezes eu repetia mentalmente. Ouço duas batidas seguidas na porta e enfio a pedra no bolso da calça.
- Ah, é você Keine - digo relaxando a postura.
- É, eu acho que sim. Quem mais poderia ser?
- Por um momento achei que pudesse ser o fantasma de Grayth - brinco e ele esfrega a mão em um dos braços, se livrando de um calafrio.
- Não diga uma coisa dessas, e se ele resolve aparecer?
- Hum - levo o dedo indicador à boca e finjo pensar. - Nesse caso, se ele aparecesse acredito que o meu guarda pessoal teria que lidar com ele.
- Sinto muito, Thomas, mas seria cada um por si. Eu fui treinado para lutar com os vivos e não com os mortos e ainda mais sendo um fantasma, isso está além das minhas capacidades - diz ele deixando transparecer o seu medo.
Dou uma risada autêntica que ressoa pela sala. Keine costumava ser bem corajoso para alguém que tinha medo de fantasmas.
- Tudo bem. Não leve tão a sério.
- A propósito - começa ele em seu estado mais calmo ao mudar de assunto. - , preciso que troque o que está usando por esse.
- Mas o que... - digo antes dele lançar o casaco preto adornado com uma faixa na minha direção.
Faço uma careta para ele que ri e dá de ombros. A contragosto visto o casaco que tem o caimento impecável, certamente foi feito sob medida. Medidas dadas pelo traidor do meu conselheiro e guarda que também vinha a ser o meu amigo. Keine me encara e faz um sinal positivo fazendo eu revirar os olhos com a sua provocação. Que ao menos eu tenha que ficar com aquilo só por alguns minutos.
- Venha, todos lhe aguardam em frente à Torre.
- Tomara que os que vieram para conhecer o novo presidente sejam a maioria - comento receoso ao sairmos da sala.
- Não se preocupe, os guardas da Elite Indy irão conter qualquer tipo de ameaça e... eu estarei lá com você também - diz ele me dando um leve empurrão como ombro. - E claro, não podemos esquecer que como um Chefe Provincial, o Max com certeza está aqui também.
Eu balancei a cabeça assentindo e sorri. Max deveria estar louco por um doce para se acalmar, ele detestava esses eventos oficiais.
O meu coração batia mais acelerado conforme as vozes iam se tornando mais audíveis. Quando as paredes dos corredores ficaram para trás senti os meus pés diminuírem a velocidade. A perda de um presidente e a apresentação de um novo substituto em um curto intervalo de tempo gerou muita comoção, eu tinha um certo receio de como seria recebido.
Eu ainda era jovem e haviam muitas coisas que precisava aprender na prática de maneira rápida. Com vinte e dois anos eu não passaria confiança alguma. Os gritos cessaram no instante em que Yervant e os outros Distritais se posicionaram onze de cada lado, me deixando em destaque no centro. Com aquela roupa, em qualquer lugar eu estaria destacado.
A minha cabeça tentava colocar em ordem o discurso que Keine me ajudou a ensaiar nos dois dias anteriores, mas as palavras pareciam não se encaixar. Respirei fundo e tentei não recuar e antes que eu pudesse falar senti o peso de uma mão no meu ombro. De esguelha olhei para trás e Silver, um dos mais rígidos Distritais, me encarou com uma expressão dura como de costume, o que me fez esquecer o discurso por completo. Quando ele deu um passo a mais para frente Yervant ficou no meu campo de visão e vi ele balançar a cabeça de leve com os olhos fechados. Parece que Silver decidira o que quer que estivesse prestes a fazer sem o consentimento dos outros Distritais. Pelo menos, não com o apoio de Yervant.
Enquanto Silver começava a discursar praticamente aos gritos para se fazer ouvir em meio ao burburinho da multidão, o meu olhar encontrou o de uma garota de pele pálida e sardas em seu rosto. Ela usava uma capa preta desbotada com um capuz sobre a cabeça e seus lábios se curvaram em um sorriso amigável.
A minha distração talvez não fosse notada por aqueles ao meu redor e eu nem precisava me dar ao trabalho de prestar atenção ao que Silver falava pois sabia exatamente como terminaria. Possivelmente por não ter certeza o suficiente do que responder, ele ignorou algumas perguntas sobre a morte de Grayth. E com algumas vaias ele encerrou o discurso menos orgulhoso do que havia começado e voltou para junto dos outros Distritais.
Eu meio que me sentia mal por aquele clima pesado na minha apresentação e assumindo como o novo presidente eu queria descobrir o que eles achariam de mim. Então disse a única coisa que me restava depois de Silver ter roubado a minha fala.
- Eu irei compensar todas as falhas que tivemos. E também serei o mais acessível que puder para ouvir as suas necessidades - acrescentei e tive a sensação de ter os olhares de todos os Distritais cravados em mim. O que eu falei de errado para receber essa repreensão?
Inconscientemente acabei voltando o olhar para a garota ruiva que abriu um sorriso travesso, a ideia parecia lhe agradar. Os meus olhos se desviaram dela para olhar os demais camponeses que aplaudiram e gritaram, o que eu interpretei como um sinal de aprovação. Os que protestavam se calaram por um instante e a minha mente não conseguia pensar se esse silêncio era bom ou ruim. A preocupação tomou conta dos meus ombros que ficaram tensos e meu corpo estremeceu. Busquei o olhar acolhedor da garota novamente mas ela não estava mais lá.
Fiquei discretamente na ponta dos pés para tentar espiar por cima de alguns camponeses a direção em que ela havia desaparecido, mas não restava nem o menor movimento de sua capa preta esvoaçante. Ela simplesmente havia sumido, como se nunca tivesse estado ali. Me perguntei o quanto daquilo era parte da minha imaginação em meio aquele alvoroço todo. Balancei a cabeça afastando essa possibilidade. É claro que ela era real, mas a forma como aquela garota desapareceu dali me deixou intrigado.
Keine pôs uma de suas mãos em minhas costas me conduzindo para dentro, fazendo eu despertar do meu transe. Enquanto acompanhava os seus passos observei os Distritais seguirem para a sala deles com expressões de desaprovação. Keine abriu a porta para que eu pudesse entrar na sala presidencial mas eu não conseguia me concentrar em nada.
- Que cara é essa? Ocorreu tudo bem no fim das contas, não deveria estar mais feliz? - indagou Keine.
- Eu estou é claro. É só que eu vi uma garota na multidão e... - comecei explicando o motivo do meu humor.
- Nem termine - me interrompeu Keine. - Da última vez que me disse isso você estava encantado por Loene.
- Não. É diferente.
- Thomas, você está noivo de Loene - insistiu ele, receoso.
- Eu não disse que me apaixonei pela garota. Eu amo Loene - afirmei com toda convicção para que não restassem dúvidas.
Suspirei e sentei em uma poltrona próxima a mesinha de centro antes de contar sobre a garota de franja espessa que ficara diante dos meus olhos e agora ocupava os meus pensamentos.
- O quer dizer com isso? - quis saber ele franzindo a testa.
- Digamos que, talvez ela não seja uma simples camponesa.
- O quê!? Você... isso... não pode ser - gaguejou Keine. No fundo desejando não entender o significado das minhas palavras.
- É só uma suposição. Talvez eu esteja errado sobre a identidade dela.
- Errado ou não, se essa garota foi capaz de aparecer e sumir de forma tão rápida com certeza ela não é uma simples camponesa.
- Então você também acha que... - comecei mas temi a resposta dele.
- Sim. Ela certamente é uma deles.
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O Diário do Presidente
Mystery / ThrillerEm Distrit Ind a sucessão de presidentes não tem fim. Por trás de cada morte existe um mistério, ou melhor, um segredo que os Distritais não conseguem desvendar. Após a repentina morte de Grayth Luster, o último presidente, Thomas assume o seu lugar...