E no fim, Mamon e eu fomos cavar as fossas do acampamento. Fiquei enfurecido no começo, achei injusto pois havia ganhado, talvez não da forma mais brava que um guerreiro deveria ganhar, e daí?, eu não era um guerreiro.
Porém com minha negação apenas acenti e fui, no dia seguinte, atravessando as tendas do acampamento, até o local do trabalho. Mamon já estava lá quando cheguei, nos olhamos rapidamente e ele apenas inclinou a cabeça em direção a uma grande caixa de madeira. Caminhei até ela e entendi. Havia um par de luvas gastas e uma pá.-não demore muito, temos muito trabalho- ele murmurou com sua frieza de sempre. Fiquei um pouco menos tenso, achava que seria um serviço silencioso, oque tornaria ainda mais demorado. Mas enquanto calçava as luvas, e até nos dias de hoje, sempre preferi o Mamon falante ao quieto e observador.
Parecia ao meu ver que, mesmo depois da atividade do círculo, e sempre enfatizando que eu ganhei. Ele não demonstrara nenhum pingo de raiva, rancor, e muito menos vergonha.
Um pensamento surgiu na minha mente. Talvez ele tivesse a mesma intuição que Agatha, previra minha ação e sentiu pena de mim?, rapidamente aboli o pensamento.-engraçado imaginar que demônios cagam- falei enquanto me aproximava. E não estava sendo engraçado, era realmente uma curiosidade e tanto.
-acha que não temos buraco ?- zombou Mamon.
-até ver o número de fossas- respondi e dei uma olhada em volta, havia muitos buracos, eram afastados um dos outros. E sempre que atingiam o limite era cobertos com terra.O chão era infértil, duro, e precisei colocar bastante força para fincar a pá, usava o peso da minha perna tentando afundar ainda mais, e comecei aos poucos jogando de lado a pouca terra que conseguia tirar.
-por que só existem homens aqui ?- perguntei tentando puxar uma conversa. Pensei em começar pedindo desculpas pelo ocorrido do dia anterior, mas a verdade é que as desculpas eram um sinal de vergonha, ou humilhação. Eu era em essência um humano, e só com o tempo aprendi os costumes dos demônios.
-não existem homens ou mulheres aqui- respondeu ele. E já estava começando a escavar a segunda fossa, enquanto eu sentia o suor escorrer.
-mas...
-éramos todos anjos em Celéstia, não tínhamos gêneros, você era oque achar melhor ser. Depois que Miguel usurpou o trono de nosso Pai, aí fomos divididos. Os que seguiam Lúcifer foram amaldiçoados e exilados, já os traidores que apoiam Miguel, ficaram em Celéstia usando o poder para nos oprimir...
-e por que demônios...
-simples, eles mancharam a honra de ser um anjo, mijaram no que era sagrado. E nós como oposição precisávamos nos reunir, e por isso demônio, significa o oposto à tudo oque os anjos de hoje representam...
-então essa é a verdadeira imagem de vocês, corpos humanos?...
-não, se você for pro outro lado de Celéstia, onde Miguel vive, vai se deparar com seres angelicais perfeitos, cheios de luz, e talvez seus olhos não aguentem tanta graça. Os anjos que se viraram contra ele, no caso nós, perdemos toda a nossa graça, nossas asas e boa parte do nosso poder- nesse momento Mamon fincou a pá com tanta força no solo, que achei que o cabo de madeira quebraria, mas não quebrou. -oque você vê agora, é apenas um quinto da nossa verdadeira natureza- ele mantinha isento de expressões, mas eu sabia que ali dentro, a raiva, a ira explodiam.Agora o buraco ia até meu tornozelo, minhas mãos ja estavam ardendo e meu punho dolorido. Eu tinha muito a aprender sobre Celéstia, anjos, demônios e toda sua opressão. E nos dias de hoje, enquanto escrevo e me recordo dos acontecimentos, ainda existem inúmeras perguntas.
-existe algum reino além de Celéstia?- perguntei.
-inúmeros- Mamon tinha fala monótona e sem empolgação, mas continuava a escavação sem esboçar um pingo de cansaço.
-habitado por anjos ?...
-não somos a única espécie aqui, de tempos em tempos uma nova criatura é descoberta, é um ecossistema infinito- ele respondeu. Imaginei quais criaturas existiam além do acampamento, e se teria oportunidade de vê-las.
-eu sei que deve parecer um pouco óbvio- comecei falando e, ainda não tinha notado que Azazel se aproximava de nós.
-você quer saber se Agatha é um demônio de verdade ?...
-eu não quis...
-relaxe Thomas...
-eu sei, é que ela me contou que era um demônio, e eu acreditei. Depois veio o lance das caixas e desafios, e eu cai como um pato...
-ela só estava testando você, existem bastante ladrões traidores por aí...
-tem razão...
-e provavelmente ela quis sacanear você, ver até onde sua burrice alcançava...
-um bom ponto- balancei a cabeça e rimos um pouco. Senti algo bom, mesmo enquanto cavava as futuras latrinas. Era um espírito de propósito, sabia que era muito cedo, e que eu seria usado apenas como carga para oque quer que fosse o plano dos demônios.
Mas se sentir parte de algo, de uma forma simples, acolhido. Longe da minha antiga vida monótona e vazia, da qual, conforme os dias avançavam eu sentia menos falta. Ser explorado em um trabalho medíocre, acúmulo de estresse, traumas familiares por conta da falta de afeto. Eu havia me fechado pro meu antigo mundo, eu guardei as coisas ruins dentro de mim, aquela era a minha escuridão. E ela me levou até aquele parapeito.
Sim, aos olhos humanos eu era um covarde, um fraco, não tinha expectativa nenhuma de vida, e tudo bem pensarem assim de mim. Existe uma pressão tão forte no sistema que estamos inserido, e essa pressão nos exige o máximo que temos. E eu não tinha nada.
Em Celéstia, mesmo a ponto de uma guerra, eu me sentia bem. Mesmo sendo o portador da Pedra do Éden, eu me sentia bem. Até cavando uma fossa.
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Expulsos do Paraíso - Sangue e Rebelião
FantasyAnjos e Demônios são reais, e a todo momento batalhas são travadas. Thomas é um jovem que vive sua vida infeliz e pacata até uma inusitada reviravolta. Depois de conhecer Agatha, um demônio rebelde. A vida do jovem mudará completamente, lugares fant...