Harvey

Alguns dias depois, tive que chatear a Brianna ao cancelar todos os compromissos que ela tinha marcado para mim após vários dias de descanso, porque aconteceu algo e a sala de emergência do hospital ficou lotada, meu pai precisou de reforços e eu fui. O que era para ser um plantão de doze horas se transformou em um de vinte e quatro, e acabei dormindo no hospital para ficar e fazer o trabalho, aí a minha mãe precisou de ajuda com a minha irmã e foram mais algumas horas de pé. Retornar para casa após um tempo tão longo trabalhando e forçando meu joelho é sempre uma graça divina, e renova o meu amor por cada detalhe do meu lar.

— Bri? Você está aqui?

Ela sai da cozinha, a roupa com farinha. Uh oh.

— Estou. Cheguei hoje cedo, passei em casa ontem à noite para pegar algumas coisas e acabei pegando no sono lá. — ela funga, os olhos vermelhos de uma alergia respiratória que já assisti muitas vezes.

— Tomou o antialérgico?

— Sim. E estou com o broncodilatador aqui. — ela tira a bombinha do bolso. — Estou bem, não tive crises, é só por precaução.

— Hm. O que está fazendo aí? — me aproximo com cuidado.

Pode ser uma das pegadinhas dela ou pode ser ela assando algo. Honestamente, não sei qual é mais preocupante.

— Um bolo. — ela sorri de um jeito tão bonitinho que não consigo lembra-la que para mexer no forno, é preciso acertar a temperatura para o que será assado, e a temperatura ali não é a certa para nenhum tipo de bolo. — Imaginei que você chegaria com fome, comprei o almoço só para mim então não teria nada fresco aqui.

Ela tira o bolo do forno e eu espio. Parece... normal.

— Vou só tomar uma ducha e venho comer.

Saio do banheiro, me visto e vou provar o bolo milagroso. Eu deveria ter percebido que algo não estava certo quando a faca teve dificuldade para cortar, mas não percebi. E ela fica me olhando com expectativa. Quando a primeira parte daquela bola seca desce pela minha garganta e eu engasgo, o sorriso dela vai embora. Eu deveria saber pela expressão de decepção dela, mas pergunto após conseguir engolir o reboco que ela chamou de bolo.

— Isso é uma das suas pegadinhas?

— Há quanto tempo não fazemos pegadinhas, Harvey? É um bolo. Está ruim assim? — ela tenta pegar para experimentar, mas eu protejo o prato.

— Se você engasgar com isso e um pedaço dessa sola de sapato parar no seu pulmão, uma crise de asma passará a ser o menor dos seus problemas.

— Tá bom, você está brincando. Eu coloquei farinha dessa vez. — ela consegue alcançar um pedaço e coloca na boca. Fico esperando para desengasgar ela, mas ela cospe na mão. — Por que você não disse que estava parecendo um bolo de cimento?

— Eu perguntei se era uma pegadinha! — me defendo.

— Você chamou de sola de sapato, parecia fofinho quando vi. Como isso aconteceu?

Sem ter uma resposta, começo a rir e ela ri comigo. A risada dela é tão engraçada que passo a rir da risada, e ela ri de mim rindo da risada. Levanto da cadeira e dou um beijo na testa dela, indo para a geladeira enquanto falo.

— Só você para me fazer rir hoje. Não entre mais na cozinha para fazer bolos, por tudo que é mais sagrado. Quer fazer macarrão, tortas, sopas, faça, bolo não.

Ela felizmente assente em concordância, e eu sento à frente dela comendo um sanduíche com o que achei aqui. Ela me olha por cima do computador.

— O que aconteceu no hospital, para você ter que ir para lá? — ela pergunta.

Inconstância Onde histórias criam vida. Descubra agora