04╵𝗛𝗘𝗔𝗩𝗜𝗘𝗥 𝗧𝗛𝗔𝗡 𝗛𝗘𝗔𝗩𝗘𝗡

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𝚁𝚘𝚜𝚎 𝙱𝚊𝚞𝚎𝚛 ᵖᵒᵛ

Enquanto eu seguia pelo caminho de volta, segurando uma caixa envolta em latas de sardinha da empresa de Joe, um amigo de infância do meu pai que ocasionalmente nos ajudava financeiramente, percebi que a densa névoa da manhã começava a se dissipar, revelando aos poucos os contornos da paisagem. As árvores imponentes surgiam de um mundo envolto em mistério, como guardiãs ancestrais que testemunhavam os segredos da região.

As narrativas das aventuras malucas do meu pai, Joe e Tio Ben ressoavam em minha mente. Eram lendas locais, jovens que haviam explorado os horizontes da América. Joe era o mais sortudo de todos, teve a brilhante ideia de introduzir o nosso peixe no mercado americano, o que o tornou incrivelmente rico. Meu pai, por outro lado, era o mais orgulhoso dos três, recusando constantemente a ajuda médica que Joe lhe oferecia para sua crescente perda de visão.

O orgulho era uma característica que corria em nossa família. Talvez fosse o que nos mantinha firmes, mesmo diante dos desafios que a vida nos impunha. Mas também era uma barreira que nos impedia de buscar auxílio quando precisávamos.

Assim como meu pai costumava dizer, "não se deixe levar pelas propostas de Joe", não foram as latas de sardinha e a América que o tornaram rico, mas sim a sua malandragem, segundo ele. Uma coisa eu tinha certeza: só iria para a América quando meu pai se recuperasse dos olhos. No entanto, após tanto tempo, já não sabia se isso era uma promessa ou uma sentença de morte.

Deixei os meus pensamentos de lado quando era obrigada a pular o caminho empoeirado de terra quando algum carro caro atravessava o meu caminho. Provavelmente era algum abastado da cidade em busca de prazer, algo muito popular na nossa região. Nunca soube ao certo do surgimento dos bordéis naquele vilarejo e da influência que elas exerciam ali, mas para um morador local, era algo comum. Não havia motivos para se surpreender.

Avistei uma garota que, assim como eu, se dirigia em direção ao centro do vilarejo, cada uma com nosso próprio propósito e destino. Ela estava descabelada e muito magra, caminhando descalça pelo chão empoeirado, andando em zig-zag. Nossos olhares se cruzaram, parecendo agradecer a companhia uma da outra naquele caminho perigoso. Instantaneamente, senti uma conexão com ela, sabendo que compartilhávamos a busca por algo além do que a vida nos havia oferecido até então.

Ao notar seus ombros fracos salientados pelos ossos, peguei imediatamente uma das latinhas que estavam dentro do caixote que eu carregava e estendi em direção à mulher. Pude observar de perto seus olhos negros, onde era difícil diferenciar a íris da pupila. Seu nariz perfeitamente desenhado acompanhado pelos lábios cheios. Para minha surpresa, ela pegou a latinha e abriu um sorriso. No entanto, o destino cruel nos separou antes mesmo que tivéssemos a chance de trocar sequer algumas palavras.

Ela caminhava em direção a um estabelecimento escuro e barulhento que chamou minha atenção. Era um bordel, onde o som alto e as luzes coloridas pulsavam em uma dança frenética. Decidi me afastar um pouco quando percebi alguns carros se aproximando, e os cafetões entravam famintos por carne.

Adentrei a igreja que ironicamente ficava ao lado, colocando o caixote de sardinhas no chão ao lado dos meus sapatos. Sentei-me em um dos bancos e permiti-me admirar os frescos pintados à mão nas paredes e no teto daquele lugar. Silenciosamente, apreciei as esculturas e o brilho da talha dourada que cobria as estruturas de madeira.

Pessoas dormiam nos bancos da capela, outras no chão com cobertas e almofadas improvisadas. Ao contrário do que se imagina em uma igreja comum, ali não se encontrava a hipocrisia religiosa que tanto me revoltava. Não havia falsas sensações de acolhimento, mentiras ou crimes ocultos. Aquele lugar não era para pessoas puras, tinha sido criada para os pecadores que gostariam de continuar a pecar. Até o próprio Pastor não era perfeito. E seremos bem sinceros, ninguém gosta de se confessar para um santo.

Respirei fundo e uma sensação de paz invadiu o meu corpo, essa paz que caminhava ao lado de uma dor intensa. Costumávamos vir aqui, papai, mamãe e eu, quando ela ainda estava viva. Ela estava enfrentando uma doença terrível, que só poderia ser tratada com recursos financeiros consideráveis. Infelizmente, não tínhamos meios para lidar com essa situação e o tempo não nos favoreceu, pois ela partiu antes que pudéssemos reagir. Às vezes, acredito que a perda de visão de meu pai tenha sido causada pela cegueira emocional, decorrente de seu profundo amor por minha mãe. 

"Está um pouco cedo, não acha? Os fiéis ainda estão dormindo" uma voz calma fez-se ouvir. O pastor caminhou silenciosamente e sentou-se ao meu lado no banco. "A que devo a visita?" perguntou ele.

Respondi, olhando para minhas mãos: "Fazia um bom tempo desde a última vez que vim ao centro... Sabia que teria que passar por aqui na volta, então decidi entrar." um breve silêncio se estabeleceu entre nós.

"A reserva de Joe?" ele perguntou, e eu assenti "Caramba, deve estar cansada. A reserva fica a alguns bons quilômetros daqui!" ele disse visivelmente surpreso.

Deixei escapar um suspiro suave, enquanto desviava o olhar para as pessoas adormecidas ao nosso redor. "De alguma forma, este lugar me traz uma sensação de tranquilidade. As florestas, os carros passando e até mesmo as garotas indo para as boates... Tudo isso me proporciona um pouco de paz" murmurei com um sorriso tímido.

"Esse lugar pode parecer um purgatório às vezes, mas acho que não mudaria nada, Rose."

Ele tinha uma expressão amigável enquanto cruzava as pernas. Era um homem encantador, sem sombra de dúvidas, a sua pele era rica em tons profundos e raios de sol dançavam em seu tom de ébano. Olhei amigavelmente para o homem. Lembro-me do dia em que uma grande notícia se espalhou como fogo pelas ruas: o padre gostava de beijar garotos, mais especificamente, Klaus.

Klaus e a sua mãe eram frequentadores assíduos da igreja. Ela participava do coro, enquanto o ruivo expressava sua paixão pela música ao tocar piano. No meio de todas as partituras e notas, se apaixonou pelo homem. Foi algo intenso, cheio de emoção e adrenalina. Não queria ser considerado um pecador aos olhos da sua mãe, até porque aos seus olhos, estava pouco se fodendo para o que iriam achar. Não tinha medo. 

"Sabe..." comecei, hesitante. "Quando eu era mais nova, cheguei a temer que acabaria como aquela garota que vi pelo caminho. Mas, de certa forma, eu me identifiquei com ela." mordisquei o lábio inferior, franzindo as sobrancelhas enquanto as lembranças surgiam em minha mente.

"É porque somos todos cúmplices do mesmo pecado" sussurrou "Todo mundo se prostitui, Rose. Só vendemos partes diferentes de nós."

Permanecemos sentados na capela-mor da igreja, em silêncio, enquanto os primeiros murmúrios das pessoas ao acordar começavam a preencher o ambiente. Decidi me levantar do banco, peguei o caixote de sardinhas e calcei os meus sapatos. Olhei para o homem que me acompanhou até a saída e ofereceu-me um último sorriso encorajador.

𝗕𝗟𝗢𝗢𝗠𝗜𝗡𝗚╵𝚃𝚘𝚖 𝙺𝚊𝚞𝚕𝚒𝚝𝚣Onde histórias criam vida. Descubra agora