Adeus, crápula!

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Já em casa e um pouco mais calma, Clara resolveu que não contaria nada do que aconteceu para Rafael, pelo menos por enquanto. Helena apoiou sua decisão e ajudou a disfarçar a situação, alegando que tinham ido ao hospital por uma virose de Clara.
Rafael tinha reatado seu namoro com Kate há algum tempo e como Bruna não deixava que o menino dormisse lá, por não sentir-se confortável com a ideia da filha ter relações sexuais em sua casa, era Kate quem dormia de vez em quando na casa da família Albuquerque. Naquela noite, a menina tinha acabado de colocar um pijama e estava pronta para dormir, quando sentiu sede e precisou ir até a cozinha. Ela se assustou, pois no meio do breu, sentada à mesa, encontrou Helena, pensativa e distante, mas visivelmente com ódio de algo ou alguém.
"Que baita susto você me deu, sogrinha fitness!" comentou em tom descontraído. Helena forçou um sorriso, tentando dissipar seus pensamentos. "O que tá fazendo aí sozinha no escuro? Você e a sogrinha master brigaram e ela te colocou pra dormir no sofá?"
Helena não aguentou e riu. Kate era super astral, tão engraçada, que conseguia arrancar um riso sincero dela, mesmo em meio à toda desgraça do dia.
"Não é nada disso, Kate." ela não poderia se abrir com a garota totalmente, porque respeitaria a decisão de Clara, mas poderia se abrir parcialmente. "É que eu fico pensando em tudo que o Theo fez, todo mal que ele causou à essas mulheres. A Clara, a você inclusive. E sinto um ódio tão grande, que me tira o sono."
Kate sorriu, sentindo compreensão e verdade nas palavras de Helena e buscou sua mão, fazendo um carinho.
"É, eu também sinto ódio. Mas eu tenho fé que esse canalha vai pagar por tudo."
"Eu não tenho tanta certeza, Kate. Esse é o país da impunidade." Helena soltou um suspiro pesado e triste. "Mas ele vai pagar sim. Ai, não gosto de pensar nas coisas que ele fez com a Clara ao longo desses 20 anos, me embrulha o estômago." tinha o choro preso na garganta, porém, mesmo com o esforço para conter, Kate sentiu que a voz dela estava trêmula.
A garota apertou carinhosamente a mão de Helena entre as dela e sorriu fraco.
"Você ama muito a Clara, né? Eu acho vocês duas tão bonitinhas juntas. Da pra ver que combinam. No futuro, vocês vão ser aquele casal idoso que a gente olha e admira, sabe? Tipo, um amor inspirador, que sobrevive ao tempo."
As palavras de Kate tiraram um sorriso genuinamente sincero de Helena, que sentiu como se fosse a primeira vez naquele dia em que sentia algo bom dentro de si.
"Sim, eu amo. Amo tanto que descobri que havia mais espaço do que pensei no meu coração, pra caber tanto amor."
"Eu também amo muito o Rafael e através desse amor, consigo ver o que você ama na Clara. Eles são muito parecidos, em todos os sentidos."
Helena passou mais algum tempo conversando com Kate, quase no escuro total, com a luz da lua que adentrava através dos vidros da janela. Quando ela seguiu de volta ao quarto com Clara, sentia-se mais leve, como se tivesse feito um exorcismo de alguns demônios interiores na cozinha.
A personal puxou as cobertas e se deitou ao lado da namorada. Em um primeiro momento, acreditou que ela dormia, entretanto, ouviu um soluço baixo e sentiu a mulher tremular.
"Amor, você tá acordada?"
Não obteve resposta. Helena puxou Clara para ver seu rosto, se deparando com as bochechas banhadas de lágrimas e os olhos vermelhos e inchados. Um choro profundo e exausto.
"Eu não queria ser essa Clara, Helena"
Helena a olhou confusa.
"Como assim, meu amor?" a abraçava e acariciava os braços dela afetuosamente.
"A Clara que foi estuprada." soluçou chorando. "Eu me sinto sem valor, agora. Me sinto uma carne estragada"
Helena aprofundou seu olhar em Clara, sentindo seu coração partir ao ouvir tais palavras.
"Você não é um pedaço de carne, Clara. Você é um ser humano. E pra mim você vale muito. Você é mais preciosa que um diamante bruto." suas mãos fizeram carinho no rosto de dela, limpando as lágrimas que escorriam.
"Eu sinto como se tivesse traído você."
Helena fechou os olhos e sentiu o impacto da maneira como Clara estava enxergando a tudo. Era demais. Além de se culpar pelo que aconteceu, ela ainda carregava a culpa de sentir-se uma traidora. Era simplesmente demais.
"Meu amor, você sofreu uma violência. Você não tem culpa de nada, me ouviu? O Theo é um desgraçado, um maldito. Ele abusou de várias mulheres." Helena não queria mais falar sobre Theo, pois sentia que mais duas frases que a lembrasse do que aconteceu naquele dia, iria atrás dele e o mataria esganado com as próprias mãos. "Clara, o que importa é que você está aqui comigo e ninguém nunca mais vai te tocar sem que queira"
"Eu tive medo do que você pensaria de mim e se você sentiria nojo de me tocar. Imaginei que nunca mais fosse querer fazer amor comigo." Clara chorou, escondendo o rosto de vergonha.
Helena fez um carinho no cabelo da namorada, tentando acalmá-la.
"Que bobagem, amor. Eu amo te tocar, amo amar você." suas palavras saíram firmes, mas afáveis. Clara sorriu em meio às lágrimas. "E ninguém nunca vai mudar isso."
Clara capturou os lábios de Helena em um beijo desesperado, demonstrando todo o medo que teve de não mais a ter. Helena era, com toda certeza, o grande amor de sua vida. Não restava dúvidas.
"Eu precisava estar com você hoje, sentir seus toques, seus beijos. Seria terapêutico, sabe?" Helena assentiu, com um pequeno sorriso. "Eu precisava me sentir amada. Mas não posso ter isso, porque estou exausta, mas principalmente porque estou com dor lá embaixo." disse a última parte com pesar e vergonha.
"Vai passar, amor. Eu prometo. E nada impede que eu te encha de beijos e faça uma massagem pra você dormir relaxada."
Clara se deitou de bruços e Helena subiu em cima dela, para massagear seu corpo. As costas desnuda, mostravam arranhões e marcas por toda parte e a personal apertou os lábios com ódio lhe consumindo. Tentou afastar pensamentos negativos, mas a cada centímetro de machucado que encontrava em Clara, sua vontade era atirar na cara de Theo. Atirar seria pouco, ela queria era descarregar um pente inteiro no crápula.
"O que foi?" Clara perguntou, percebendo que Helena parou a massagem.
Helena não queria fazer Clara se sentir mal, então apenas continuou a massagem.
"Nada. É que estou ficando com sono."
"Deita aqui então, amor. Vamos dormir." Helena saiu de cima e Clara se virou, com os seios à mostra.
Helena viu mais marcas pelos seios da namorada e sua tarefa de não se irritar tornava-se cada vez mais difícil.
Clara subiu as alças da camisola novamente e se ajeitou ao lado de Helena, que envolveu seu corpo de maneira protetora.
"Boa noite, amor" Clara disse.
"Boa noite, meu amor" Helena respondeu.
Clara pegou no sono em questão de segundos, enquanto Helena demorou horas encarando o teto e sem sucesso na tentativa de dissipar seu ódio por Theo bastos. A cada minuto, tudo em que conseguia pensar eram inúmeras formas de acabar com a raça dele.
***
Helena soltou a porta do carro e quando viu já a tinha batido com força. Caminhou na direção da velha casa com as mãos nos bolsos e um olhar atento e analítico. Logo parou em cima de uma pedra, ao lado da casinha de madeira à beira da estrada. Era um lugar ermo o suficiente para que se sentisse segura em esperar pelo pai, sem testemunhas do encontro deles.
Durante todo o tempo em que esperava pelo pai, Helena foi invadida por memórias de sua infância e adolescência.
Viveu a infância em uma casa grande e urbana, com quintal grande, mas afastada o suficiente para que o silenciador na arma do pai conseguisse conter totalmente o barulho dos tiros. Joel prefiria o quintal de casa ao invés de um estande de tiros. Desde os 4 anos de Helena, o homem trabalhava como agente penitenciário. E na altura de 10 anos de idade da menina, achou que seria boa ideia ensinar a filha a atirar, para que soubesse se defender. Helena riu ao se lembrar de como seu irmão Fernando recusou ser ensinado e não quis sequer segurar a arma em sua mão.
No quintal da casa, usando latinhas de cerveja como alvo, Helena deu seus primeiros tiros. Ela bem se lembrava que antes de tudo, a primeira coisa que seu pai lhe ensinou foi como travar e destravar a arma. Depois, como carregar e descarregar a arma. Por fim, como atirar. Ele a ensinou que deveria segurar a arma com as duas mãos para aguentar o tranco e não machucar a mão. Dentro de um ano, Joel se orgulhava ao dizer, seguro e certo, de que Helena atirava melhor que alguns de seus colegas de trabalho agentes.
Helena balançou a cabeça, espantando algumas memórias. No presente momento, sentia certa apreensão. Era claro que não hesitaria em matar Theo, mas e se algum dia fosse descoberta, Rafael ficaria magoado por saber que havia matado seu pai? Era certo de que tinham uma péssima relação e que o homem não prestava, mas ainda era o pai do rapaz.
"Que olhar distante" Helena levou a mão ao peito e se agitou, quase virando um soco na cara de seu pai. Joel havia aparecido atrás dela do nada.
"Que susto, pai!"
"Elemento surpresa." o homem riu. Um vento forte balançava seus cabelos e os de Helena, que eram pouco mais longos que os do pai. "Sabe que não foi à toa que sobrevivi a tantas rebeliões naquele maldito presídio." disse com um cigarro preso entre os dentes, caçando o isqueiro no bolso da calça.
Helena sentiu uma estranheza ao vê-lo depois de quase dois anos. Infelizmente, ela amava aquele homem mal humorado e mulherengo, que conseguia ofender doze minorias a cada duas frases. Sim, ela o amava. E assim como doaria um rim a ele, sabia que mais do que isso, ele daria sua vida por ela. Joel não era dos melhores, nem como pai, nem como ser humano. No entanto, carregava o fardo de ser o único homem amado por Helena em toda sua vida.
"Claro, pai." sorriu, se deixando ser abraçada pelo homem. Helena não suportava o cheiro do cigarro, mas se manteve ali por alguns segundos, pois precisava do abraço dele. Quando se desvencilharam, Joel tinha um brilho nos olhos que parecia preocupação. Ele nunca negaria um pedido urgente de Helena, mas daquela vez apenas não tinha certeza se estava fazendo o certo. "Trouxe o que eu pedi?"
"Filha, primeiro preciso saber porque está fazendo isso e quem é a vítima"
Helena revirou os olhos, ela não queria dar detalhes. Só precisava pegar a maldita arma e fazer o que tinha de fazer.
"Eu sei que você vai dizer um monte de merda, inclusive que não vale à pena sujar minhas mãos por outra pessoa, mas..." Helena estava quase chorando, o que amoleceu o coração de Joel. Estava vidrado na filha, a aquela altura já temendo que o sujeito houvesse feito algum mal a ela mesma. "Ele estuprou minha namorada. O nome dele é Theo Bastos e ele é ex-marido dela"
"Você ama tanto essa mulher a ponto de se arriscar desse jeito, Helena?!" perguntou com um olhar sincero, buscando a verdade dentro dos olhos da filha.
"Sim, eu amo." e ele pôde reconhecer o amor nos olhos dela.
"Então, me deixe fazer o serviço. Tenho experiência nisso e menos chances de ser pego pela polícia." pediu, tomando as dores da filha.
"Não!" Helena negou veemente. "Isso é assunto meu, ele precisa morrer pelas minhas mãos!"
Joel tentou argumentar, mas Helena estava decidida. Ele tirou a arma de dentro da mochila e estendeu embrulhada em uma flanela.
"Tome cuidado. A numeração é raspada, é uma 38, você já atirou com o modelo. Semi-automatica, ok?"
Helena assentiu.
"Obrigada por me ajudar, pai"
"Eu sou é louco por ajudar. O pior pai do planeta." maneou a cabeça para os lados. "Mas cansei de interferir em suas escolhas"
Mais tarde, Helena se encontrava sozinha em seu apartamento. Dissera à Clara que precisava de uma noite para descansar um pouco sozinha e a mulher pareceu entender.
Helena segurava a arma ainda travada na direção do horizonte, imaginando como seria quando fosse Theo em sua mira.
"Adeus,crápula!" afirmou entre dentes,com ódio.

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