Primeira Lembrança

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Está quente, mas não do jeito que pinica a minha pele e me deixa mais irritado do que costumo ser e aparentar. Está quente com aquela brisa suave que vez ou outra movimenta os fios mais leves do meu cabelo, fazendo valer a pena está usando mangas compridas nessa hora da noite.

Está quente pela quantidade de pessoas que ocupam esse bar movimentado no centro da cidade. Seus corpos próximos demais, se esfregando, misturando seus cheiros, desejos, angústias e vícios, banhados por luzes neons e a música que não me permite distinguir entre as vozes.

Deveria ter escolhido um lugar mais afastado e esquecido.

Estou aqui desde quando marcou duas horas que abriram. A bebida começou a aparecer gradualmente na minha frente, em doses generosas e goles demorados, o efeito era lento, esquentando meu corpo, minhas bochechas e as pontas dos meus dedos segurando o vidro frio. Mas agora eu viro ansiosamente como se já tivessem mais cinco doses esperando na minha frente.

Ignoro todas as tentativas de interações, bebidas enviadas com bilhetes foram tomadas sem ao menos procurar o remetente, isqueiros oferecidos não surtem efeito, meu maço de cigarro continua intacto em cima da mesa mesmo que a abstinência esteja dando sinal.

Meu olhar no momento detém-se apenas no barman a minha frente que manipula as garrafas com uma maestria impressionante. Que sorri para todas as mulheres e homens que usam o balcão do bar como parada temporária e ainda ganham como "cortesia da casa" seus beijos quentes que alguém consciente e vivo, o que é bem diferente de mim no momento, sentiria inveja.

O observo com o queixo apoiado nas minhas mãos cobertas pelo excesso de tecido, sinto que pisco pouco com receio de perder algo. Ele me entretém, seu sorriso me cativa lentamente quase como se fosse envolvido em sensações inebriantes. Ele só está aí na minha frente e já sinto devoção a sua figura.

Meu pé inquieto bate na base do balcão e não sei se incomoda alguém.

- Seus olhos parecem cansados demais para um rosto que deseja tanta vida.

Ele finalmente parou de atender outros clientes, enxuga as mãos em um pano que ainda revela um pouco do branco original e o coloca sobre o ombro coberto pela camisa preta justa, antes de se aproximar, apoiado na mesma superfície que estou, e sorri.

Eu suspiro, sem esconder o quanto isso me agrada. Esse homem empurra para a minha frente um copo cheio.

- É chopp de morango com laranja, sei que gosta especialmente dessa bebida - dá uma piscadela - você sempre pedia quando vinha com mais frequência aqui, mas estava acompanhado antes né?

Puxo o copo para perto. Sinto seus olhos sobre mim e meus movimentos. Molho meu indicador no líquido e levo aos lábios, delirando com um dos meus sabores favoritos. Deixo uma alegria infantil coroar, quando não relaciono mais com aquele lábio.

- Falou certo, "estava" acompanhado, isso já faz um tempo.

- Então o garotinho está solteiro? Uma benção, porque aquele cara não combinava em nada com você.

Tomo um gole curto o encarando, digerindo seu comentário mais rápido do que costume, já que o ouvi sair de várias outras bocas. Ele não apenas tem um sorriso nos lábios, agora posso ver nos seus olhos e na forma como se aproxima mais de mim.

- Como pode ter tanta certeza? Você só nos conhecia pela aparência.

- Realmente... - ele leva alguns fios de cabelo que estão sobre o rosto para trás - não me importaria de levar ele para a cama, parecia dar para o gasto não é? Mas vendo você sozinho é a primeira vez que parece vivo. Como um sobrevivente, mas ainda sim vivo.

Chopp de Morango com LaranjaOnde histórias criam vida. Descubra agora