Última Lembrança

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Estou escrevendo o que eu acredito ser o último texto deste livro, já internado no hospital, com Ian me fazendo companhia, mesmo que no momento ele tenha saído para comprar sorvete de café e creme - que o médico disse que é ótimo para diminuir o mal estar.

Faz duas semanas que estou aqui e nada me agrada, mesmo que esteja tentando ver as coisas com mais espiritualidade. Minha voz está fraca, consigo falar poucas palavras por dia, o que me entristece. Conversar era tudo o que me mantinha animado no começo. Esse câncer está destruindo minhas cordas vocais como se já não fosse o suficiente está me levando junto por completo.

Minha aparência está péssima também, estou pálido e mais magro do que já era, perdi completamente o pouco de bochecha que eu tinha e eram apertadas por Hugo contra a minha vontade. Meus olhos vivem cansados e opacos, devido a quantidade de sono que venho perdendo pelas dores que os remédios já não conseguem resolver como antes.

Eles disseram que tudo isso infelizmente é normal e que estão fazendo o máximo.

Sempre é isso, o máximo, o máximo que não está servindo pra melhorar nem o mínimo do resto dos meus dias. Minhas noites só não são piores, porque quando o Hugo não está comigo- o proíbe de deixar as noites no bar pelo hospital- o Ian fica comigo nesse quarto gelado, com paredes sem graça e brancas.

Ontem recebi a visita da minha editora, ela trouxe o protótipo da capa e contracapa deste livro, e quando eu vi chorei, chorei como venho evitando a alguns meses, mas não pela tristeza que me assombra ainda mais perto da morte, mas por uma alegria genuína e amor puro quando vi sua foto trabalhando atrás do balcão na frente.

Ian estava aqui. Expliquei tudo pra ele e o deixei como o responsável pelos detalhes do lançamento do livro. Acho que meu melhor amigo entendeu, mesmo que estivesse acabando de chorar como eu, e prometeu que cuidaria do Hugo no processo..

Hugo...

Estou feliz que o meu marido tenha feito esses últimos meses inexplicavelmente radiantes para mim, mesmo que a mente dele esteja especialmente perturbada.

Eu o entendo.

Aqueles dois meses no sítio foram preciosos demais. Sempre pensei que tinha dedo podre para plantas, mas me emocionei acompanhando uma flor crescer. Adotamos também um coelhinho chamado Chopp que sempre dormia nos meus braços, enquanto eu e Hugo assistimos o pôr do sol pela varanda. As últimas semanas foram ainda mais legais quando o Ian chegou com ê namorade dele, legal e espirituose. Elu trouxe uma peruca ruiva para mim de presente e é a que estou usando nesse momento. A surpresa de tudo foi o moleque. Não esperávamos que a presença dele na casa acabaria com um relacionamento poligâmico entre ele e os nossos amigos, que já vai durar 3 meses. No fim, estou contente que eles estão felizes, eles merecem todo esse amor.

Eu ainda tenho muitos remorsos, não queria levar isso tão intensamente ao meu túmulo, mas ainda tenho coisas que me incomodam no final dos meus dias.

Sinto muito pelo nosso processo de adoção não ter sido rápido o suficiente, pelos motivos de preconceito que envolvem um casal gay, mas eu deveria ter feito mais, ter brigado mais com Deus e o mundo. Desculpa por não ter sido nem um bom namorado, nem um bom marido, pelos erros que cometi no processo e o quanto machuquei a gente com os meus problemas e outros tantos que não quero gastar linhas com. Sei que o Hugo vai dizer que estou sendo louco, mas preciso aliviar meu coração.

Consigo escutar a voz do Ian do lado de fora falando com alguém. Jaja o médico vai vim fazer a visita diária com sua avaliação sobre o quão bem estou para morrer. Espero que quando Hugo veja esse livro, me perdoe por ter escondido durante tanto tempo, mas era algo que eu precisava fazer assim. Pelo menos já vai amanhecer e ele vai vim tomar café comigo, vou tomar um banho e tirar esse pijama de hospital que me deixa totalmente exposto do lado de trás.

Sei e sei muito bem que falei poucas vezes que o amava no nosso relacionamento e agora as coisas vão se tornar mais difíceis à medida que perco a minha voz. Isso me apavora, me tira noites de sono mais do que as dores agonizantes, porque eu quero poder dizer uma última vez quando a hora chegar.

Sei que até isso essa maldita doença está tirando de mim, ela me quer miserável, mas Hugo não vai deixar isso acontecer, porque prometeu, naquele corredor sujo da nossa antiga casa, que nunca soltaria a minha mão.

Quero sentir meu tempo acabando com ele do meu lado, nossas mãos entrelaçadas e seu abraço de urso quente com cheiro de casa. Já que minhas palavras finais serão tiradas, espero que você possa ver nos meus olhos o quanto eu te amo uma última vez.

Hugo, meu querido, meu amor, meu grandão. Eu te amo. Obrigado por ter cuidado deste sobrevivente desesperado tão bem.

E que a gente se encontre em outras vidas, se assim existirem.

Chopp de Morango com LaranjaOnde histórias criam vida. Descubra agora