Quarta Lembrança

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- Merda. Merda Teo, me diz logo qual é o problema

- Me deixe em paz. Vá se fuder! Pouco me importo com o que você quer saber.

- Você o que? - pergunta entre os dentes

- Eu não quero falar sobre essas coisas, e você não se cansa de insistir e encher a merda do meu saco.

Estamos gritando e tenho certeza que todo o prédio deve estar ouvindo. Não é comum na nossa rotina brigarmos, poucas coisas nos irritam ou são motivos pra discordância, e normalmente o que surge é facilmente resolvido quando conversamos sobre limites, mas sempre que a questão se torna mais íntima e os meus sentimentos são colocados em jogo, raramente consigo expressar tudo ao Hugo.

Jogo o pano de prato sobre a louça com raiva. O jantar foi silencioso, amargo. Começamos a nos estranhar na madrugada anterior, saindo do turno dele no bar. De manhã foi um inferno e agora, eu ou ele, finalmente explodimos.

Não sei dizer ao certo quem é o culpado disso tudo.

- Eu te fiz uma pergunta simples no jantar. Uma pergunta e você me deu calado como resposta, como vem fazendo desde ontem.

- Isso continua sendo um problema meu - cruzo os braços e o encaro apático.

- Por Deus, você é insuportavelmente teimoso- ele bufa jogando o corpo sobre os joelhos, sentado na ponta da nossa cama de casal - Eu percebi, é impossível não perceber já que moramos em um cubículo, mas você não dormiu nada essa noite.

- E?

- E significa que tem algo te perturbando, não é? Por que você não pode me dizer? Não confia em mim?

Reviro os olhos, impaciente. Odeio o tipo de conversa com perguntas preocupadas e odeio a forma como ele não pode me deixar sofrer sozinho.

- Não coloque confiança no meio, que você sabe muito bem que não é esse o ponto - rio seco - Lembra que eu caí nas suas mãos na primeira vez que saímos?

- Mas sua sinceridade é seletiva. Você não fala o que eu deveria saber.

- Você não precisa saber de nada, Hugo - olho para os meus pés, porque não quero manter o contato visual - não precisa se envolver com problemas e questões inúteis.

- Seus sentimentos são inúteis?

Gargalho baixo, tristemente. Aprendi a rir da minha dor, da minha situação patética, há um tempo. Bem melhor do que tentar resolver.

- Não Hugo, eu sou inútil, um caso perdido e você não deve se importar com isso.

- Você é um imbecil!

- Sou, e preferia estar morto agora, seria uma benção para você.

Hugo abre a boca para me contrariar mais uma vez e eu sorrio, como se tudo fosse simples e natural. Ele se levanta, pega a jaqueta de couro pendura em um gancho, passa por mim, atravessa a porta e a bate com força, sem dizer nada.

Olho novamente para o chão e gargalho, até restar uma risada, depois um sorriso e por fim um suspiro sôfrego. Escorrego até o chão da nossa cozinha, sentando.

Falei merda, eu sei.

Para Hugo tudo funciona tão facilmente: quando não está bem, o que raramente acontece, ele me pede com uma naturalidade absurda colo, conselho e afagos. As palavras saem da sua boca com tanta suavidade que os problemas não passam de monstros irracionais no momento que os revela, na nossa cama. Escuto e faço o que sei de melhor, o ajudar a pensar com mais racionalidade, mas às vezes questiono se ele preferia que eu fosse um namorado mais carinhoso.

Eu não sou assim, por Deus como eu me condeno por não ser. Hugo percebeu essa dificuldade quando meu mundo desabou a primeira vez, com a minha tristeza e melancolia natural se alastraram até a superfície da minha pele, que nem seu toque quente foi suficiente para tirar o frio que sentia.

Meus sentimentos vão se acumulando, escondidos nos meus sorrisos convidativos, nas minhas piadas sem graça, na minha maneira de desviar dos problemas com assuntos aleatórios.

Ou pior, na forma como eu convenço Hugo que tudo é passageiro.

Sempre estive tão preocupado em cuidar dos outros, em cuidar dele enquanto me destruía, que não sei mais o que fazer quando sou eu quem continua sangrando.

O chão está frio, o apartamento congelante e não sei se fazem minutos demais que ele saiu de casa. É difícil me arrastar para fora do meu lugar, porém é mais sufocante continuar onde estou.

Perdi muitas coisas, principalmente a mim mesmo, por deixar tudo trancado aqui dentro como se assim pudesse curar essas sensações auto destrutíveis. Perdi pessoas, o amor, a alegria e aquele sabor delicioso da vida. Não posso me permitir perder o único que me resta, o que eu conheço como vida.

Não posso perder o Hugo.

Levanto desesperado, a procura de algum calçado, as chaves, meu celular, preciso encontrá-lo. Abro a porta com pressa e preparo para correr escadas abaixo, até ver ele sentado no chão, apoiado na parede do corredor.

Nossos olhos se encontram e sorrio.

- Eu não quero que você morra, não precisa que isso aconteça para tudo se resolver.

- Eu sei...

- Você não precisa se proteger dos seus fantasmas sozinhos, Teo.

Seu olhar é sereno, suplicante, fazendo meu estômago revirar.

- Eles podem machucar, podem te tirar o sono, podem fazer com que seus olhos, que porra tanto amo, percam o brilho, mas você não precisa passar por isso sozinho.

- Eu sei.

- Eu sou um homem grande, enorme - ele abaixa a cabeça e ri brevemente - não me importo em apanhar pela gente, apanhar por você, mas por favor não destrua o meu coração pensando que é insignificante para mim...

Não falo nada.

- Você é quem eu amo Teo, com quem eu divido a cama, os sonhos e para quem entrego meus beijos e segredos mais íntimos, então eu preciso de você.

- Eu sei, meu bem.

Ele oferece um sorriso sem mostrar os dentes.

- Se você responder "eu sei" para mais alguma coisa, vou proibir a sua entrada um ano inteiro lá na porra do bar.

Suspiro e me jogo nos seus braços abertos e ele me envolve com todo o seu corpo.

- E então? - seus dedos passeiam pelos fios ruivos do meu cabelo que ele cortou faz alguns dias.

- Hugo... por favor - me escondo mais no abraço

O corredor está mal iluminado, uma lâmpada pisca sobre nossas cabeças esperando para queimar. As paredes cinzas estão descascadas e com salitre. Aqui fede a velhice, abandono e desolação, mas é sobreposto pelo cheiro de pêssego vindo do meu namorado.

- Tudo bem, no seu tempo Teo, sei que consegue - ele afaga mais um pouco antes de me envolver dentro da sua jaqueta de couro.

Inspiro calmamente.

- E- eu preciso de ajuda...

Expiro com força.

- Não consigo sozinho, Hugo.

Beijos suave são depositados no topo da minha cabeça.

- Tudo bem, eu vou segurar sua mão, ruivo.

Chopp de Morango com LaranjaOnde histórias criam vida. Descubra agora