Família deveria significar alguma coisa para mim, foi isso que me fizeram acreditar.
- Você quer construir uma família?
São sete horas da noite de um domingo. Estou com a cabeça pendurada na ponta da cama olhando, de baixo para cima, Hugo que está ocupado na cozinha preparando o nosso jantar.
Algo que venho descobrindo aos poucos sobre o meu namorado é a sua paixão quase nostálgica por cozinhar. E como consequência, de algo ultrapassado e brega chamado relacionamento, sou o seu degustador oficial e de quebra crítico mais cruel.(mesmo que ele nunca faça algo ruim)
Faz pouco tempo que Hugo combinou com o seu chefe que não trabalharia no domingo em alguns finais de semana para passar mais tempo em casa comigo, já que durante os outros dias acabo cansado demais para qualquer coisa depois de dar aula de reforço em duas escolas públicas do bairro.
Nesse meio tempo comecei a escrever o meu primeiro livro para uma editora de médio porte, que reconheceu o meu trabalho através de algumas publicações independentes dos meus contos.
Agora uma parte do meu tempo livre se resume em aturar o Hugo perguntando se bati a meta de palavras escritas do dia e se mais alguma coisa legal aconteceu na história, ou pedindo para reler o que já escrevi, porque segundo seus conhecimentos de literatura, que se sustentam em revistas sobre bebidas alcoólicas, eu sou o melhor escritor do nosso século.
- Construir uma família? Por que essa pergunta do nada? É alguma inspiração para o seu livro?
Jogo os braços para o chão e gemo frustrado com ele.
- Nem sempre é sobre o livro, troca o disco um pouquinho! - Ele dá de ombros ainda de costas para mim. É uma visão e tanto, usando somente uma cueca boxer alaranjada. - Eu só quero saber se você sonha em formar uma família!
- Você sempre aparece com umas coisas do nada - tira a panela do fogão
- Homem, por Deus, só responda. - praguejo
- Tudo bem, eu já pensei sobre isso.
Resmungo, concordando, já esperando essa resposta.
Hugo é o candidato ideal para uma família grande e feliz do tipo que se reúnem ao redor de uma enorme mesa para a ceia de natal. Eu, ao contrário, sou aquele que espia pela janela da casa desejando participar ou destruir toda essa alegria festiva e familiar.
Família deveria significar algo para mim como significa para o Hugo, mas vindo de onde eu vim, ter abandonado esse propósito foi um feito nobre.
- E o que mudou? Porque tipo, você ainda pensa em construir uma, né? - Viro e me sento na cama com as pernas dobradas - então por que não tá indo atrás dos seu plano?
- Como assim? O que você quer dizer?
Ele joga o pano de prato por cima do ombro depois de abaixar o fogo, virando para mim.
- Sei lá, você poderia encontrar uma mulher bonita e de sucesso que todos olham com inveja, não sabe se dela ou de você...
- Meu bem... - Hugo esfrega o meio dos olhos
- Então vocês comprariam uma casa enorme com mais de dois quartos, teriam filhos lindos, porque obviamente é impossível com suas genética as crianças serem feias, mas por favor não escolha aqueles nomes do momento....
- Ruivo, aonde você quer chegar com-
Levanto o indicador, interrompendo, porque ainda não terminei.
- Então vocês seriam aqueles pais de capa de revista, os queridinhos dos vizinhos, do colégio, dos pais das outras crianças e acabariam os seus dias bem velhinhos, juntos e -
- Teodor, chega disso!
Ele bate o punho no balcão me encarando impaciente e eu cruzo os braços fazendo bico.
- Não entendo o que caralhos você quer com tudo isso. Por que colocar um cenário desse do nada, sendo que eu estou em um relacionamento com você? - aponta para mim - Esse papo não me agrada nem um pouco.
Hugo volta a mexer nas panelas.
- Desculpa, acho que pensei longe demais. - olho para o piso encardido.
- Não, o problema é que você pensou, Teo - ele solta os utensílios irritado e se aproxima de mim - pensou em algo que não deveria ser pensado, porque não há espaço para isso na minha vida. Na nossa vida.
- O que? Uma família?
Ele segura a cabeça entre as mãos resmungando impaciente, girando no seu próprio eixo.
- Teo seja direto - suspira, colocando a mão na cintura à minha frente - já conversamos sobre você precisar ser mais sincero sobre os problemas.
Resmungo, me jogando de costas na cama, velha, barulhenta e o melhor lugar para dormir no mundo.
- Eu só não entendo porque você abandonou tudo isso. Era a porra da vida perfeita.
- E por que você acha que eu abandonei? Que não tenho a vida perfeita?
- Seja racional Hugo!
Cubro meu rosto com a mão, apertando com força alguns fios do meu cabelo entre os dedos. Fecho os olhos e escuto soltar o ar com força. O espaço ao meu lado na cama afunda e suas mãos seguram as minhas.
- Por que você não se imagina nos meus planos?
Não respondo.
- Não mudou nada meu bem. Ainda planejo ter uma família e estou conquistando isso aos poucos com você ao meu lado.
Ele me puxa com cuidado para mais perto do seu corpo, me envolvendo.
- Na época que você estava com aquele cara, eu namorava uma garota e pensava que seria a mulher da minha vida, mas agora eu vejo que não existia nada ali que indicasse isso.
- E por que comigo você acha que existe? - pergunto tão baixo, com medo dele ouvir.
- Eu odeio quando você surge com pensamentos de inferioridade no nosso relacionamento, porque parece que não demonstro o quanto eu sou apaixonado por você o suficiente.
Hugo tem o melhor cafuné do mundo, capaz de deixar as coisas mais fáceis quando sinto medo.
- Quando você me beijou a primeira vez, eu soube que nada mais seria o mesmo e fiquei feliz com essa sensação. Temos um lar, mesmo que seja apertadinho, temos nossos empregos, nossas rotinas, podemos ter algum bichinho ou adotar um filho, não sei ainda. Mas o que eu sei é que você é a minha família. Nós somos uma família. Você é todos os meus planos Teo.
Enfio ainda mais meu rosto contra o seu peito escondendo a vermelhidão que sobe até as minhas orelhas e meus olhos prestes a chorar.
- Não acho que a palavra "família" sirva para mim. Às vezes sinto que te arrastei para um lugar perdido. Nem sei se seria um bom pai.
Hugo me puxa para cima do seu corpo me beijando e abraçando pela cintura. Seus beijos são a mistura de caramelo, creme e café.
Sempre quero devorar seus lábios.
- Agora você entendeu o que eu quis dizer?
Ele me pergunta e eu o encaro confuso
- Por Deus, achei que você fosse mais esperto, Ruivo. - ele aperta a minha bochecha, enquanto apoio o queixo sobre o seu peito - Você não precisa pensar se serve para isso ou não, entendo seu medo, sua família era uma merda completa, mas aqui temos a oportunidade de aprendermos juntos o que "família" deve significar. Você entendeu, meu bem?
- Me desculpa por sentir medo.
- Tudo bem - ele me abraça aconchegantemente - estou orgulhoso de você por ter falado. Ter medo é humano e já sabemos o quanto você sangra que nem um.
Sorrio e roubo um selinho
- Agora - ele se levanta comigo ainda no seu colo - preciso terminar o jantar e colocar a massa da torta de limão no forno.
Ele dá uns tapinhas na minha bunda indicando para eu sair de cima.
Família deveria significar algo para mim.
Hugo é a minha família
VOCÊ ESTÁ LENDO
Chopp de Morango com Laranja
Roman d'amour"The club isn't the best place to find a lover So the bar is where I go". Menos este bar. E não que Teo estivesse procurando um amor, pelo menos não depois do que aconteceu. Mas as coisas são imprevisíveis ou apenas o universo é brincalhão, ele não...