O cheiro de limpeza é irritante, uma mistura nada agradável de álcool, lavanda, alecrim e algo a mais que não sei identificar da mesma forma que não sei dizer onde estou. A luz atravessa um pouco as minhas pálpebras que estão pesadas, sei porque já tentei abrir os olhos algumas vezes e ainda não encontrei forças para isso. Mexo-me sobre a superfície macia e sinto meus membros tensos e incomunicáveis.
Não tenho lembranças concretas de nada no momento. Sei que "sou", porque estou aqui, mas não sei ao certo o que estou "sendo". Recordo somente de ter alguém e não sentir o terror de estar sozinho.
Sei que algo aconteceu, porque algo sempre tem que acontecer comigo.
Abro os olhos, pelo que acho ser minha quinta tentativa e é preciso suportar a queimação que a luz provoca. Estou em um quarto que não é o meu, sem as paredes de um tom de pêssego velho que já avisei inúmeras vezes que precisam ser pintadas novamente e sem os posters de bandas de rock antigas que as futuras gerações não fazem mais ideia de quem sejam. São, na realidade, paredes brancas, com móveis claros e sem vida com no máximo detalhes azuis em coisas pequenas demais para identificar.
Estou em um quarto de hospital, pelo pouco que sei e consigo pensar no momento. Pisco algumas vezes e começo a olhar para os cantos com cuidado e dificuldade. Não posso me mexer muito, tem tubos estranhos demais saindo de mim.
Já ultrapassei o meu limite de confusão há tempos.
Meu peito aperta quando a imagem de Hugo volta a se formar na minha mente. Ele está com a cabeça deitada na lateral da minha cama, dormindo aparentemente bem, mesmo sentado no que eu acho ser um banco minúsculo para ele.
Mas por que está aqui? Enrolado em um cobertor? Desde que horas ele tá aqui, ou melhor, eu estou aqui? Reparo que em um dos sofás que ocupam o quarto, Ian dorme com os braços cruzados contra o peito.
O que está acontecendo? Porque eu estou....
Aprendi a chorar intensamente desde que entrei nesse relacionamento, ou melhor, nessa fase caótica da minha vida e é exatamente o que acontece mesmo que os tubos dentro da minha boca dificultem e me impeçam de puxar o ar. Me remexo angustiado, enquanto choro mais, acordando os dois, em especial Hugo que parece assustado. O nosso amigo corre para fora chamando alguém
Meu namorado beija a minha testa falando embolado e apressado palavras e frases que misturam o quanto me ama e como estava com medo de me perder, porque não aguentaria sua vida sem mim. Uma confusão de sentimentos que não entendo metade no momento e Hugo não está sabendo expressar.
Lembro que nesta noite terminei o último capítulo do meu livro, o primeiro que escrevo. Lembro do sentimento estonteante que fluia pelo meu corpo e brincava com o meu humor quando avisei para ele que hoje era "o grande dia" e precisávamos comemorar quando voltasse do seu turno no bar. Ele comentou que traria uma garrafa do meu chopp favorito para tomarmos com alguma comida especial e saiu de casa....
Tempos depois enviei o documento, trezentas e poucas páginas, para a revisão com a minha editora, lembro de estar perto de uma da manhã na última vez que olhei o celular...
Depois, minha cabeça estava doendo, latejando e me sentia enjoado, enojado com tudo. Não faz sentido eu estar aqui nesse quarto de hospital. Só bebi um pouco, um pouco a mais do que o normal, da garrafa de whiskey de Hugo, ele ainda nem havia chegado em casa. Li as últimas páginas que escrevi mais uma vez - meu querido jardineiro e seu monólogo em uma floricultura- tomei alguns comprimidos, era um simples mal estar, depois mais outros, outros, outros...
Não lembro de ter chegado à cama...
Os olhos vermelhos, as bochechas grandes molhadas pelas lágrimas que não paravam de descer me acertaram em cheio, fazendo desviar o olhar de Hugo. O que eu fiz? O puxei fundo na desordem e lástima que preenche o meu peito, mesmo que ele tenha trazido a vida de volta. O trouxe para a angústia que é me ter ao seu lado, instável e inconsequente.
Ele deveria ter ido embora, levado sua cara bondosa, seu grande coração, que combina com o seu tamanho, em busca da vida boa que poderia ter sem mim - o escritor fracassado, traumatizado até o último sopro da sua alma, e que morreria sem ver sua obra finalizada- morreria porque não sabe lidar com as alegrias na sua vida e nem acreditar que pode ser feliz que nem todo mundo, ter amigos e ter alguém que o ame além do que o amor foi lhe ensinado.
Um patético desesperado.
Não consigo encarar o Hugo, com toda a certeza ele me detesta.
Ian se aproxima depois que o médico tira os equipamentos da minha intubação, deposita um beijo na bochecha e me agradece, mas por que? Pelos seus olhos também vermelhos?
Agora não sei se preferia que eles tivessem deixado.
Fecho os olhos como se minhas lágrimas fossem parar graças a isso. Quero falar algo, mas minha garganta queima e meus lábios estão secos. Hugo parece ignorar a situação em que me encontro e me beija tão intenso que rouba o pouco do ar que lutei para conquistar. Segura meu rosto como sempre fazemos e sorri até os seus olhos.
Eu o amo, como posso ter pensado em deixar esse homem? Mesmo assim, seria o melhor para ele...
- Teo, agora tá tudo bem... - ele volta a se acabar em lágrimas - estou tão feliz que você continua comigo, ruivo...
Lembro que nesse dia, envolto pelos seus braços, nossas lágrimas eram diferentes, as suas eram doces e as minhas ainda mais salgadas.
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Chopp de Morango com Laranja
Romance"The club isn't the best place to find a lover So the bar is where I go". Menos este bar. E não que Teo estivesse procurando um amor, pelo menos não depois do que aconteceu. Mas as coisas são imprevisíveis ou apenas o universo é brincalhão, ele não...